Certas casas. Por Antonio Contente
… Há, nas nossas vidas, casas passageiras e outras que ficam. Entre estas, algumas se diluem no tempo; mas, se em ruinas se acabam, não é assim que permanecem nas memórias. Ao escrever sobre isso, navego em minha longa existência crivada de casas…
Há, nas nossas vidas, casas passageiras e outras que ficam. Entre estas, algumas se diluem no tempo; mas, se em ruinas se acabam, não é assim que permanecem nas memórias. Ao escrever sobre isso, navego em minha longa existência crivada de casas. Curiosamente não aquela na qual nasci, em Cametá, Pará, Amazônia Profunda. Pela simples e boa razão que dela saí aos três meses, levado para Mocajuba, vilazinha no mesmo Tocantins, rio acima. Desta sim, as recordações são preciosas. Palafita encravada na ponta de uma ilha, ali abri os olhos às belezas que me cercavam. E ainda hoje, se aroma de jasmins sinto, ressoam aos meus ouvidos marulhos d’águas em marés enchentes, ou bufar de botos que muitas vezes vi se transformando em gente. E havia flores, passarinhos, floresta de seringueiras altas; porém, sobretudo, noites absolutamente crivadas de estrelas. Entre elas, se lua o céu mostrava, era um esparramar de, como se dizia antigamente, argêntea claridade a lamber troncos ribeirinhos e santificando a superfície do rio de largura imensa de quase não se avistar a margem oposta.
De cidades, meninice escolar, súbito me vi na charmosa Belém dos anos 40, pós-guerra, numa casa de muitos quartos, salas, corredor pleno de janelas, e porão com grande salão para refeitório e algazarra de meus cinco irmãos e muitos primos. O quintal, imenso, era dividido em dois. Num, jardins com bem cuidados canteiros e coradouros onde as roupas brancas, por causa do anil, azulavam ao sol. No outro, muitas galinhas ciscavam; e perus, patos, picotas e até duas ou três cutias que circulavam entre troncos de biribazeiros, abieiros, sapotilheiras, laranjeiras, açaizeiros, mamoeiros e pupunheiras com cachos de vermelho intenso.
Casas outras, adiante, marcaram minha vida. E, mesmo tendo sido passageiras, ficaram para sempre. Como aquela que frequentei durante todo um ano nas primeiras vezes em que pisei nesta amada Campinas, final da década de 50, quando, por causa dela e do que nela havia, me apaixonei pela cidade e acabei vindo morar aqui, anos depois. O que lembro? Era branca, grande, como muitas residências no antigo Cambuí Nobre. Ali morava um bom homem, sua mulher, duas filhas, um filho. Ah, sim, uma avó. E, convenhamos, casas antigas, sem elas, sem avós, certamente eram menos aureoladas. Às vezes passo por aquela rua, só que a casa não existe mais. Porém, continuarei me enternecendo com certa tarde do passado em que, num pós-chuva, avistei lindo bem-te-vi, normalmente só visíveis de longe, pousado quase ao alcance de minhas mãos no galho de viçosa romãzeira, no jardim. Como esquecer isso?: belo solar a abrigar pai, mãe, filhos, simpática avó e um pássaro de peito amarelo a me observar entre folhas. Dando a impressão de ser meu, de que poderia retê-lo para sempre. Todavia, súbito, em rápido voo, foi embora. Prelúdio do aprendizado de como são efêmeras certas ilusões…
Seguindo no tempo houve, no Rio de Janeiro, a bela casa da Ly. Tinha jardim, quintal cercado por velhos muros cobertos de limos e heras, o que só lhe ampliava o charme, no Leblon d’outrora. Ainda mais que sobre eles resvalavam folhas de duas grandes mangueiras de troncos nodosos e galhos abertos ao sol das manhãs luminosas, ou à lua que muita vez me chamou a viagens intermináveis. Ly era um encanto de pessoa, eu a amava; nas noites frias de alguns invernos memoráveis, elaborava sopas para as quais chamava os amigos. Nunca mais, em minha vida, experimentei nada igual. Os legumes, especialmente as folhas de couve rasgadas a flutuar em caldos de densidade certa, pediam também bom vinho que nunca faltou nas taças. Nesta casa descobri, com seu começo em calçada diante da garagem, o Caminho de Santiago de Compostela que levava ao bar da esquina, mar à vista, lugar de brejas para todos, oráculo d’amor para mim. Como a anterior, esta morada também se diluiu na voracidade do tempo. Faz um mês passei por lá e, no seu lugar, as ruinas de sonhos, tênues, permanecem. Porém, os passarinhos do entorno sumiram, levando consigo a iluminada Ly. Tão linda, encantou-se. Virou sanhaço…
Outras casas abriram portas à minha vida e por elas resvalei com entrega total. Entre emoções achadas e diluídas, o saldo é de encantos. Para alguns pode até parecer trágico, porém é muito certo o que li no livro de Herman Raucher que deu o belo filme de Robert Mulligan, “No Verão de 42”: a vida é feita de idas e vindas; para cada coisa que se ganha, há outras que se tem que perder…
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Maravilhoso