Dipironas e paracetamóis

Dipironas e paracetamóis. Por Marco Antonio Zanfra

Dipironas…o hábito de manter uma ‘farmacinha’ em casa e de distribuir remédios a torto e direito é tão comum ao brasileiro que a gente nem se dá conta dos riscos que representam a autodiagnose e, pior, a prescrição informal e leiga de medicamentos a parentes e vizinhos…

Dipironas e paracetamóis

– Você gosta de dipirona?

A pergunta, que soaria menos estranha se viesse de um traficante de analgésicos, partiu da dentista que, nos próximos dias, iria escarafunchar minha arcada dentária em busca de um lugarzinho para ancorar um canino.

Achei engraçado e brinquei: se tiver como segunda opção um bolo de chocolate, vou preferir um prato de dipironas!

Era mentira, claro! Não gosto de dipirona, paracetamol, aas, cibalena, diclofenaco ou qualquer outra química que altere minha química própria. Não é uma campanha de boicote contra a bilionária indústria farmacêutica! Eu simplesmente não gosto.

E graças principalmente a essa minha antipatia inata, estou livre de um fantasma que assola o mundo: a automedicação!

Porque a automedicação é uma coisa séria. A Fiocruz sustenta que a cada três horas um brasileiro é intoxicado por culpa de medicamentos. Para o Ministério da Saúde, os remédios são responsáveis por quase 27% dos casos de intoxicação ocorridos no país. A indústria farmacêutica atribui às intoxicações medicamentosas cerca de 20 mil mortes por ano. Não é de assustar?

Mas o hábito de manter uma ‘farmacinha’ em casa e de distribuir remédios a torto e direito é tão comum ao brasileiro que a gente nem se dá conta dos riscos que representam a autodiagnose e, pior, a prescrição informal e leiga de medicamentos a parentes e vizinhos.

Se o antibiótico me fez bem, se não houve efeitos colaterais, se minha pressão se manteve constante e se não sofri choque alergênico, por que diabos minha mãe, apenas vinte e poucos anos mais velha que eu, não poderia também usufruir de seus efeitos benéficos?

Não conheço uma casa que não tenha sua caixinha de remédios. Em algumas, o conteúdo não passa de prosaicos analgésicos, antitérmicos e antigripais. Mas há casos em que essas inocentes caixinhas guardam todo o repositório de anos e anos de moléstias na família – incluindo surtos hipocondríacos – juntando vasodilatadores, antiespasmódicos, anti-inflamatórios, anti-histamínicos, antibióticos, broncodilatadores e toda uma carga de antialguma coisa, que pode provocar a temida interação medicamentosa e levar o paciente à morte.

Vocês sabiam que a associação de um anti-inflamatório com um descongestionante nasal pode ocasionar uma parada cardíaca?

Tento explicar o hábito da automedicação pela falência do serviço de saúde: é muito menos doloroso tomar um remédio indicado por um vizinho do que enfrentar horas e horas na fila do SUS, ou gastar o que não se tem com médicos particulares e/ou planos de saúde. Mas um detalhe quebra parte dessa lógica: as farmacinhas caseiras são muito mais antigas do que a falência do sistema de saúde, o que leva a crer que a automedicação é nada mais nada menos do que apenas mais um dos filhotes do ‘jeitinho brasileiro’.

Há alguns anos, quando minhas filhas ainda eram solteiras, aconteceu comigo. Comecei a sentir, à noite, uma dessas dores de cabeça circundantes, típicas de um princípio de gripe. Minha filha mais nova disse que eu estava com ‘voz de doente’ e voltou com três frascos nas mãos, todos para combater uma provável gripe. Recusei os medicamentos, alegando que meu organismo costumava combater autonomamente a doença, e fui para a cama.

Voltei em seguida com um enjoo forte, que me fez vomitar um pouco, e o diagnóstico mudou: eu teria, no caso, pego a virose da filha mais velha, que tinha baixado pronto-socorro recentemente por causa disso. E então veio a própria – a filha mais velha, não a virose – com as mãos cheias de comprimidos de hioscina e metoclopramida que haviam sobrado de seu recente pit stop ambulatorial. Recusei novamente o receituário e voltei para a cama, desta vez com um rótulo de teimoso pregado na testa.

Na manhã seguinte, ao contrário das previsões de minhas ‘doutoras’, acordei bem. Como eu pensara logo ao sentir o enjoo, meus sintomas tinham sido apenas consequência de um protesto alimentar: meu organismo, um requintado e exigente carnívoro, não havia tolerado comer carne de soja em duas refeições seguidas, e chiou feio. Não questiono as boas intenções das duas, mas eu escapei por pouco de ser medicado para gripe e para virose, quando tinha passado longe de qualquer um dos dois males.

Quando comentei com minhas filhas sobre o risco de ser medicado erradamente, ambas alegaram que o que queriam me receitar eram apenas medicamentos inofensivos. Mas é justamente nessa suposta inofensividade dos remédios que mora o risco da automedicação.

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MARCO ZANFRA

Marco Antonio Zanfra  – Nasceu em São Paulo. Escritor e Jornalista, formado pela Faculdade Cásper Líbero em 1977. Foi repórter por vinte e cinco anos, quinze deles cobrindo a área policial. É casado e pai de duas filhas. Mora atualmente em Florianópolis.
Suas publicações:
.Manual do Repórter de PolíciaAs covas gêmeasA rosa no aquário

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