O céu, os pássaros e a catedral. Por Antonio Contente

A conversa fluia bem, sorvíamos capitoso vinho branco, quando o céu sobre o imenso Amazonas e a mata, no quase começo da noite, começou a mudar de cor. Foi ficando vermelho, com variações para o sépia, alaranjado, rosa, pequenos laivos de azul…

         Fazia frio, muito frio naquele inverno em Milão onde, em certo ano do século passado eu estava a trabalho do jornal no qual trabalhava. Na citada estação escurece cedo; e, no lusco fusco do fim da claridade, em certa tarde de sábado fiz algo que gosto muito de fazer: buscar grandes templos, em horários vazios, para, em algum escaninho escondido, sentar para pensar. Não em coisas de religião, pois minha fé, infelizmente, eu capitularia como sendo quase indigente. Assim, vou só para pensar num local silencioso, apenas repassar fatos que a escrita da vida redige. Às vezes, com maestria de estilo. Outras, nem tanto…

         E ali, num cantinho daquela que considero a catedral mais linda do mundo, emergiu em minha mente certa viagem, ocorrida alguns anos antes quando, como presente de aniversário para o meu único filho então adolescente, paulista nascido em Campinas, o levei para conhecer o rio Amazonas. Num roteiro de Belém a Manaus que, na subida do curso d’água, demora uma semana. Era um bom navio, confortável, bem refrigerado e, no topo, como se fosse uma espécie de teto-plataforma, amplo espaço. Com barzinho, mesas, lugar ideal para apreciar o que o rio imenso tem para mostrar.

         Como bom repórter, perguntei ao imediato que tipo de passageiros estavam no paquete.

         — Turistas – ele respondeu – porém, de brasileiros, apenas você e seu filho, mais dois casais, um de Minas outro de Santa Catarina. Gringos há alguns de diversos lugares, até da Finlândia. Os brazucas preferem as breguices de Orlando e Miami. E há um grupo de modelos italianas posando no exótico da Amazônia para uma revista de modas.

         Quando ele falou em modelos italianas, pintou na minha cabeça a possibilidade de que talvez pudesse me aproximar de alguma delas para preencher uma das crônicas que enviava, via telex, diariamente, para a Folha da Tarde. O imediato prometeu falar com o empresário. Promessa cumprida com sucesso, pois, no final da tarde, eu estava frente à frente com Claudia Morante, linda, lindíssima moça de olhos profundamente azuis; que encontrou comigo no barzinho, com vista para o rio, a fim de batermos um papo.

         A conversa fluia bem, sorvíamos capitoso vinho branco, quando o céu sobre o imenso Amazonas e a mata, no quase começo da noite, começou a mudar de cor. Foi ficando vermelho, com variações para o sépia, alaranjado, rosa, pequenos laivos de azul. Súbito, Claudia, apontando para a margem, interrompe a conversa para murmurar um “mas que belo, que coisa mais bela”. E no instante em que bandos de pássaros, papagaios, araras, garças e guarás entraram na cena a voar na direção da mata, a moça pareceu parar de respirar, e seus lindos olhos de um, como já disse, azul profundo, se encheram de lágrimas. Com ela a repetir, “mas que belo, mas que belo”. Ficamos mudos, por instantes. Bem depois, dei meu lenço para que ela enxugasse o rosto, e perguntei onde morava, na Itália. Ao saber que era de Milão, para tentar retomar o papo, murmurei:

         — Acho que a Catedral de lá é o templo mais lindo do mundo.

         — De fato – ela sorriu – mas no duomo da minha terra nunca senti, como acabo de sentir agora, com este céu e os pássaros voando para seus ninhos, a presença de Deus…

         Torno então ao local em que pensava essas coisas, na igreja milanesa. Era hora de tornar ao hotel, não muito longe, dava para ir caminhando pelo zero grau. Antes, porém, parei numa espécie de lanchonete, que funcionava também como livraria, ponto de venda de jornais e revistas, para adquirir os vespertinos que acabavam de circular.  Foi quando, erguendo a vista, vi, na prateleira, exposta uma “Vogue Itália” com linda moça na capa. Fixei a vista achando que era ela, e, diante dos indesmentíveis olhos azuis, lá estava o nome da modelo que eu entrevistara no navio em pleno rio Amazonas. Comprei a publicação e os vespertinos, e me recolhi ao hotel. Mas foi só ao subir pro apartamento, após o jantar, que abri o jornal da tarde. E logo me chamou a atenção uma notícia na primeira página, a segunda manchete, dando conta que um avião particular, ao amanhecer, caíra ao pousar na localidade de Portofino, matando, além da tripulação, dez passageiros, pessoas importantes dos mudos artístico e cultural da Itália, só se salvando um. Fui direto ao nome do sobrevivente. Era a modelo Claudia Morante, que me contara, anos antes, ter sentido, no colorido céu que cobria a Amazônia profunda, a presença de Deus; o que jamais sentira no duomo de Milão…

Meses depois foi noticiado que ela, por problema num dos pés em função do acidente aéreo, abandonou as passarelas. Casou com um pastor presbiteriano inglês e foi morar em Bridgetown, na Ilha de Barbados, Caribe. Sumiu para sempre. Isso, para nós. Para ela mesma, vai ver que se encontrou.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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