Sol laranja sob uma chuva ácida. Por Aylê-Salassiê F. Quintão
… Uma nuvem de fuligem, visível, espalha-se pelos ares. Já se espera que a primavera será inaugurada, a semana que vem, por um sol laranja e “chuvas ácidas”, tóxicas, provocadas não só pelos combustíveis fósseis…
CHUVAS ÁCIDAS ABRIRÃO A PRIMAVERA NOS ESTADOS
Uma nuvem de fuligem, visível, espalha-se pelos ares. Já se espera que a primavera será inaugurada, a semana que vem, por um sol laranja e “chuvas ácidas”, tóxicas, provocadas não só pelos combustíveis fósseis, que dão vida ao modelo industrial e à enorme frota de automóveis, mas pelas queimadas (**). O evento está previsto para ocorrer em São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Aparentemente, ninguém detectou ainda, com precisão, a dimensão dos efeitos desse envenenamento vagaroso da população pelos incêndios florestais. As atuais “queimadas controladas” – concepção acadêmica – continuam a destruir tudo desde 14 de agosto de 1963, quando se tomou conhecimento amplo do fenômeno que, nos trópicos, se repete nos meses de julho, agosto e setembro.
Naquele agosto de 1963, um incêndio incontrolável emergiu subitamente, destruindo cerca 20 mil hectares de florestas plantadas, e 500 mil de florestas nativas e matas secundárias., devastando os municípios de Guaravera, Paiquerê e Tamarana, no Paraná, desabrigando centenas de famílias e provocando a morte de 110 pessoas. Depois estendeu-se para Ortigueira, Tibagi, Arapoti, Jaguariaíva até Sengés. Cerca de 15 milhões de araucárias de reservas florestais plantadas pelas indústrias Klabin, produtoras de papel e celulose para exportação, foram totalmente destruídas, embora a empresa tivesse um sofisticado projeto de proteção de suas áreas de florestas.
Mesmo com os diversos programas de governos, sobretudo federais, conduzidos por cientistas e especialistas bioclimáticos, a perda da cobertura arbórea no Brasil, devido a incêndios nos trópicos, subiu, em média, 41, 5 mil ha (9%) ao ano. Seria acusada de responsável por cerca de 15% do aumento das áreas desmatadas no planeta.
Queimadas devastadoras surgem periodicamente também no, no Chile, EUA (Califórnia), Portugal, Espanha, França, Grécia, Austrália e alguns países do sul da Ásia. Esses incêndios são vistos, entretanto, com complacência, lamentando-se, frequentemente, as perdas humanas e materiais. Da África sabe-se pouco.
Nos trópicos, nos meses de inverno (julho a setembro), registram-se anualmente fortes estiagens, com taxas de umidade baixas, e vegetação ressequida. Surpreende mesmo são as queimadas chegando ao Pantanal, onde são extensas as terras úmidas. Constata-se que o uso do fogo para limpar os terrenos agrícolas, mesmo controlado, não resiste aos ventos constantes e se reproduz pela vegetação. O máximo que se consegue, com aplicação de tecnologias modernas, é contê-lo pontualmente. Aceso, vai se multiplicando, até alcançar proporções incontroláveis.
Apagar mesmo o fogo sobre a vegetação natural, no inverno tropical, só com as chuvas que, em geral, vêm no final de setembro, com a chegada da primavera, conforme demonstra a sabedoria indígena ancestral. Os estudiosos das queimadas tratam a experiência dos povos originários, entretanto, como uma maneira ingênua de praticar o manejo dos recursos da floresta.
Na ausência do saber ancestral, torna cômodo encontrar ” bodes expiatórios” pessoas para serem acusadas levianamente de responsáveis pela queimada seja para renovação da terra produtiva ou para a expansão da pecuária. Nas denúncias veiculam-se até estatísticas, como faz o secretário Wolnei Wolf , Coordenador de Prevenção e Programas Estratégicos da Defesa Civil do Governo Federal. Supostas autoridades em desmatamento e queimadas chegam a afirmar que “tem certeza de que 99,9% das queimadas são causados pela ação humana”.
Embora a maioria dos percentuais citados não sejam tão confiáveis, é provável, sim, que boa parte das queimadas surja mesmo para limpeza dos terrenos agrícolas ou para renovação das pastagens. Há gente que seria paga para fazer o fogo abortar. Os políticos gostam desse argumento para culpar opositores, embora a expansão das queimadas tenha um pé nos financiamentos públicos do BNDES, do Banco do Brasil, e dos bancos privados, como incentivo a expansão da produção agropecuária na balança comercial, políticas mantidas pelos próprios governos de plantão.
Pesquisadores menos comprometidos com a produção agrícola admitem, com reserva, a hipótese mais centrada em observações empíricas, supostamente científicas, de que a secura do ar e da vegetação favorece a combustão vegetal na medida em que o sol incide diretamente sobre os cristais expostos na superfície do solo, especialmente no do cerrado.
Neste cenário de leviandades e de efetivo desconhecimento científico sobre a origem das queimadas, surgiu, de repente, um personagem novo, o PCC- Primeiro Comando da Capital, organização criminosa do Brasil, criada no submundo de São Paulo, e que se espalhou por todo o território brasileiro, alcançando até países próximos, como o Paraguai, a Bolívia, a Colômbia e a Venezuela. Possuiria 30 mil membros, sendo 8 mil apenas em São Paulo. Com ele, emergiu uma narrativa dando conta de que filiados da organização, financiados por produtores rurais, foram presos como incendiários. Seria um deboche ou um desafio ao jornalismo investigativo?
Os políticos, desconhecedores efetivos das razões das queimadas, não perdem a oportunidade para fazer delas uso retórico, sobretudo em tempos eleitorais. Para desviar a atenção da população instituíram até o “Dia do Fogo”, como se com ele estaria resolvida a questão das queimadas. Em 2023 foi criado um tal de Cemaden – Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, para monitorar e emitir alertas sobre esses tipos de fatalidades, como se o IBAMA, o INPE e INPA já não fizesse isso há anos, sem encontrar, de fato, uma solução definitiva, nem usando helicópteros, aviões tanques, bombeiros, agentes florestais e um voluntariado.
Um dos dirigentes da Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (Nasa), dos EUA, James Hansen, confirmava que havia “99% de chance de que o aquecimento do clima na Terra vinha da poluição produzida por atividades humanas, não apenas das queimadas da vegetação natural, mas também da utilização massiva de combustíveis fósseis: petróleo, carvão mineral, gás natural, urânio, xisto betuminoso – base do modelo industrial que, no fundo, trafega longe desses discursos ambientais.
Não faltam estatísticas, nem institutos de pesquisas para carimbar as informações sobre as queimadas no Brasil. O tal de Cemaden informou que, no mês de agosto, o número de incêndios florestais no País elevou-se de 110 para 3.300. Desde o início deste ano, o INPE sozinho teria detectado 50 mil focos desses incêndios por aqui. Pelo que vê, na chegada da primavera, o brasileiro vai estar desfrutando de uma visão laranja do sol, chuvas ácidas e ares poluídos. Ninguém tem a solução.
(**) Queimada é provocada; incêndio florestal é espontâneo
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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural, ex-guarda florestal do Parque Nacional de Brasília Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018
Autor, entre outros, de Lanternas Flutuantes:
Português – LANTERNA FLUTUANTES, habitando poeticamente o mundo
Alemão – Schwimmende-laternen-1508 (Ominia Scriptum, Alemanha)
Inglês – Floating Lanterns
Polonês – Pływające latarnie – poetycko zamieszkiwać świat
novo livro de Aylê-Salassiê: TERRITÓRIO LIVRE!