ÁFRICA

FONTE: WIKIPEDIA

“África” é um nome racista? Por Aldo Bizzocchi

… Na verdade, o nome Africa já era correntemente usado pelos romanos para designar o norte do continente, especialmente a Líbia e o Egito, a única parte do extenso continente que eles conheciam à época. Igualmente chamavam seus habitantes de afri, donde saiu o nosso prefixoide afro (de afrodescendente, por exemplo)…

 África

Tenho sempre dito que o negacionismo, fundamentado em notícias falsas, por vezes fabricadas propositalmente, não é exclusividade da direita: a esquerda, especialmente a identitarista (faço questão de distinguir entre identitarista e identitário: o segundo luta por causas justas, o primeiro faz delas instrumento de luta pelo poder), é tão negacionista quanto, apenas produz desinformação sobre outras questões.

Leio no portal de notícias G1 a matéria Filósofos africanos consideram que a palavra ‘África’ é uma injúria racial, e que continente deveria ser renomeado (disponível em https://g1.globo.com/educacao/noticia/2024/09/13/filosofos-africanos-consideram-que-a-palavra-africa-e-uma-injuria-racial-e-que-continente-deveria-ser-renomeado.ghtml), em que o professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade de Pretória, África do Sul, Jonathan Okeke Chimakonam é entrevistado. A matéria se inicia com as seguintes perguntas: “Os africanos devem ser chamados de negros ou a categorização das pessoas pela cor da pele é uma prática racista? E quanto à África? O nome do continente é uma injúria racial porque foi escolhido pelos exploradores europeus e baseado no clima, e não nas pessoas, e deveria ser renomeado?”

A partir dessas perguntas, o entrevistado, de quem se deduz que, sendo professor de uma das mais importantes universidades africanas, deveria ter um conhecimento razoável de história, geografia e mesmo de etimologia, não hesita em desfiar um rosário de informações mentirosas a fim de sustentar sua tese wokista de que tudo o que os indivíduos brancos fazem ou fizeram tem sempre uma intenção racista (mesmo que os negros façam o mesmo em relação aos brancos, mesmo que qualquer etnia faça o mesmo em relação a qualquer outra etnia).

Diz Chimakonam:

O nome África foi dado ao continente pelos exploradores, escravagistas e colonizadores europeus que chegaram como comerciantes e exploradores nos anos 1400. Acredita-se que “África” tenha sido tirado do grego aphrike, que significa sem frio; em latim, traduz-se para aprica, que significa ensolarado.

Agora vamos aos fatos. Em primeiro lugar, o nome do continente não surgiu nos anos 1400, dado “pelos exploradores, escravagistas e colonizadores europeus”. Na verdade, o nome Africa já era correntemente usado pelos romanos para designar o norte do continente, especialmente a Líbia e o Egito, a única parte do extenso continente que eles conheciam à época. Igualmente chamavam seus habitantes de afri, donde saiu o nosso prefixoide afro (de afrodescendente, por exemplo). Segundo a Wikipédia,

Afri era um nome latino usado para se referir aos habitantes do que era então conhecido como norte da África, localizado a oeste do rio Nilo, e em seu sentido mais amplo referindo-se a todas as terras ao sul do Mediterrâneo, também conhecido como Líbia Antiga. Este nome parece ter originalmente se referido a uma tribo nativa da Líbia, um ancestral dos berberes modernos; […] O nome tinha sido geralmente ligado com a palavra fenícia ʿafar que significa “poeira”, mas uma hipótese de 1981 afirmou que deriva da palavra berbere ifri (plural ifran) que significa “caverna”, em referência aos moradores de cavernas. A mesma palavra pode ser encontrada no nome dos Banu Ifran da Argélia e Tripolitânia, uma tribo berbere originária de Yafran (também conhecida como Ifrane) no noroeste da Líbia, bem como da cidade de Ifrane no Marrocos.

Como ocorre muitas vezes nos estudos etimológicos e onomásticos (onomástica é o ramo da etimologia que estuda os nomes próprios), não há certezas absolutas quanto à origem de nomes muito antigos, mas o simples benefício da dúvida já seria suficiente para que não se lançassem acusações levianas e desprovidas de evidências contra certas palavras ou nomes. O que se sabe com certeza — e que contradiz veementemente o argumento de Chimakonam — é que o nome da África não foi dado pelos colonizadores europeus do século XV nem tem relação com o suposto grego aphriké, vocábulo que nem consta nos dicionários de grego. Em grego clássico, aphrós significa “espuma” (daí o nome da deusa Afrodite, nascida da espuma do mar), e phriké é a agitação do mar encapelado. Tampouco África tem a ver com o verbo latino aprico, “aquecer ao sol”. O ilustre professor chega até a confundir o grego phriké com o latim frigus, “frio” ao dizer que aphriké é “sem frio”. Uma verdadeira salada de pseudoetimologias!

Mas ele segue em frente em sua argumentação falaciosa:

Os antigos judeus se referiam a pessoas de outras nações e crenças como gentios, o que era uma calúnia porque os identificavam como forasteiros. Os antigos chineses se referiam aos povos da Mongólia como bárbaros, e a lista continua.

Só que gentio deriva de gente, portanto não tem nada a ver com “forasteiro”, e bárbaro é um termo de origem grega para designar os povos não gregos, logo essa palavra jamais foi empregada pelos chineses para referir-se aos mongóis. Mas, como diz o próprio Chimakonam, “a lista continua” — no caso, a lista de fake news identitaristas:

De fato, em muitos casos, os nomes são calúnias destinadas a rebaixar essas pessoas ou lugares. Por exemplo, aprendemos com os relatos de Homero, o antigo poeta grego, que, quando os gregos encontraram pela primeira vez os povos do leste da África, eles os chamaram de aethiops ou Aithiops, que significa rosto queimado pelo sol.

Voltemos à Wikipédia:

Não é muito certo quão velha é a palavra Etiópia, cujo uso mais antigo aparece na Bíblia em Gênesis, capítulo 2. E também na Ilíada, onde o nome aparece duas vezes, e na Odisseia, onde aparece três vezes. O uso mais antigo atestado na região é um nome cristianizado do Reino de Axum no século IV, em escrituras de pedra do Rei Ezana. O nome ge’ez ʾĪtyōṗṗyā e seu cognato português são considerados por alguns estudiosos serem derivados da palavra grega Αἰθιοπία, Aithiopia, de Αἰθίοψ, Aithiops ‘um etíope’, derivado, por sua vez, de palavras gregas que significam “de rosto queimado”. No entanto, O Livro de Axum, uma crônica em ge’ez compilada no século XV, alega que o nome é derivado de ’Ityopp’is — um filho (não mencionado na Bíblia) de Cuxe, filho de Cam, quem, de acordo com a lenda, fundou a cidade de Axum. Plínio, o Velho alega, igualmente, que o nome da nação deriva de alguém cujo nome foi Aethiops. Uma terceira etimologia, sugerida por pesquisadores etíopes recentes e o poeta laureado Tsegaye Gabre-Medhin, traça o nome às palavras “egípcias, velhas e negras”: Et (Verdade ou Paz), Op (Alto ou Superior) e Bia (Terra ou País), sendo Etiópia a “terra de paz superior”.

Mais uma vez, o étimo “de rosto queimado” é apenas uma hipótese, por sinal, a mais fraca em termos de evidências científicas. Mas, entre a “terra da paz superior” e a “terra dos rostos queimados”, os wokistas preferem a segunda, já que precisam de um argumento para sua autovitimização. Aliás, se a ideia é criar falsas etimologias para incriminar os brancos opressores, escravistas, racistas, misóginos, homofóbicos, fascistas, etc., então que tal relacionar África com o grego áphron, “irrefletido, inconsequente, disparatado, tolo”?

Mas o sábio filósofo africano prossegue: “o nome África é uma injúria racial. Aphrike ou aprica refere-se ao clima quente do continente, talvez em exagero, com a falsa impressão de que o continente é ‘sem frio’. Se o continente é quente e não tem frio, isso o tornaria o proverbial fogo do inferno, não é mesmo?”

Agora ele nos brinda com a informação de que a referência ao alegado clima quente da África é uma injúria racial (por essa lógica, o nome da Islândia, que significa “terra do gelo”, também seria uma ofensa aos islandeses, não?) e conclui por meio de um raciocínio altamente tortuoso que, se a África é quente (do ponto de vista dos europeus, obviamente), então ela tem a ver com fogo, e fogo tem a ver com inferno, logo, por uma série questionável de silogismos, a África é o próprio Inferno da tradição judaico-cristã, certo? Viram como é fácil misturar sofismas lógicos com pseudoetimologias para criar bandeiras de luta identitarista e bombar nas redes sociais?

Mas a cereja do bolo vem agora:

Alguém se pergunta por que os defensores do racismo científico em algumas universidades europeias nos anos 1700 e 1800 […] decidiram classificar os povos indígenas africanos com a cor preta, os índios americanos com o vermelho, alguns povos asiáticos com o marrom, outros com o amarelo e os europeus com o branco? […] esses são vários níveis de degeneração, com exceção da cor branca, que é intocada, pura e imaculada. Em nossa opinião, identificar um ser humano com qualquer cor é racismo. Identificar-se como branco é desconsiderar os outros como não brancos, o que é racismo indireto, e chamar alguém de qualquer outra cor — como negro — é uma subordinação racial direta.

A essência do projeto de categorização de cores da humanidade era estabelecer a hierarquia racial como parte de uma tentativa de defender o racismo científico e justificar a escravidão, a opressão colonial e a exploração.

Portanto, segundo Chimakonam, chamar os negros de negros (embora seja essa a cor de sua pele) é racismo, mas chamarem-se os próprios brancos de brancos (embora essa também seja a cor da sua pele) não é porque, na visão do filósofo, a cor branca é diferente das demais (talvez ela tenha alguma propriedade óptica que as demais cores do espectro não têm, alguma propriedade oculta que os físicos ainda não descobriram). Mas será que denominar os negros como afrodescendentes, os asiáticos como orientais, os índios como povos originários ou os brancos como caucasianos muda alguma coisa em relação ao racismo? O que motiva o ódio entre etnias é uma simples questão estética como a cor da pele? Ou será que o preconceito e a discriminação nascem do choque entre culturas, em que grupos sociais com hábitos muito diferentes, por vezes inconciliáveis, são forçados a habitar o mesmo espaço?

Pois o pensador sul-africano propõe alterar o nome do continente africano para Anaésia, termo derivado de duas palavras do idioma igbo, ana e esi, que significam “terra ou local de origem”: o continente onde se originou a espécie humana e onde a primeira língua humana foi falada. Nome bonito de significado idem. Mas até que ponto — e a que custo — se deve mudar um nome com milênios de tradição apenas porque um acadêmico sul-africano que pouco ou nada entende de etimologia ou história acha que o nome atual é ofensivo? Se for assim, proponho mudar o nome da América, que faz alusão a um branco europeu racista, opressor, colonialista, escravagista, capitalista selvagem — e por que não machista, homo e transfóbico? — chamado Américo Vespúcio. Gostaram da ideia?

______________________

ALDO BIZZOCCHIAldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.

Acaba de lançar, pela Editora GrupoAlmedina,

“Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”

Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br

1 thought on ““África” é um nome racista? Por Aldo Bizzocchi

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assine a nossa newsletter