Kamala-Trump, lições tropicais. Por Fernando Gabeira
By Chumbo Gordo 3 meses agoAssisti ao debate Kamala x Trump como se estivesse num laboratório. Meu tema de pesquisa: como neutralizar candidaturas que o milionário inspira nos trópicos. Lendo “Os bastidores”, livro de Martin Amis, encontrei a lei que na realidade inspira minha pesquisa. É a Lei Barry Manilow. Amis a formula assim: todas as pessoas que conheço detestam Barry Manilow, e todas as pessoas que não conheço gostam dele. As que não conheço são muito mais numerosas.
Cada vez que um candidato desse tipo avança nas pesquisas, há duas tendências: falar mal dele entre nós ou tentar entender o que acontece. Elas podem coexistir. Mas, considerando a Lei Barry Manilow, não adianta apenas falar mal.
Um dos argumentos que dinamizam certos candidatos de fora da política é se apresentarem como empresários de sucesso. Eles e seus eleitores ignoram que as leis que regem uma empresa privada, com seu conselho diretor, são diferentes das leis que movem a máquina pública e as câmaras legislativas. A experiência não pode ser transplantada mecanicamente. Há um talento específico para governar, que nem sempre existe no empresário.
Kamala Harris foi mais objetiva do que estou sendo. Conhecendo a psicologia de Donald Trump, ela o atacou naquilo que mais o desequilibra: o ego. Duvidou de seu êxito empresarial, afirmando que foi apenas o bebê de um empresário muito rico e encontrou um caminho já construído.
Outra questão bem trabalhada foi desmontar as mentiras. Os jornalistas contribuíram para isso. Trump falou de imigrantes comendo cães e gatos em Springfield. Foi desmentido. Falou de governadores democratas que permitem o assassinato de bebês recém-nascidos. Também foi desmentido. Claro, essas mentiras podem ser recortadas e circular pelas redes sociais. Mas nada impede que o recorte dos desmentidos também seja.
Trump, durante todo o tempo, parecia triste, e isso combinava com sua visão apocalíptica caso perdesse a eleição: a eclosão de uma Terceira Guerra Mundial. Kamala esteve todo o tempo radiante e sorridente. Considerando o peso das imagens, levou vantagem a maior parte do tempo, mesmo porque poucos acompanham áudio em todos os detalhes.
Ela procurou se mostrar como uma candidata do futuro e escapou habilmente de se identificar com o status quo. Trump estava preparado para combater Joe Biden. Ela disse:
— Não sou Joe Biden.
Kamala Harris venceu por pontos. Da mesma forma, um simples debate não oferece um aprendizado completo. Mesmo porque o debate não assegura a vitória nas eleições. Mas é valioso diante do desafio da Lei Barry Manilow. O caminho do aprendizado psíquico sobre o candidato é essencial, da mesma maneira o entendimento do fascínio que ele exerce sobre as pessoas.
Um exemplo tropical. Quando alguém tem pavor de tomar vacina e de falar fino, quando alguém encontra um japonês por acaso e faz piada sobre o tamanho do pênis, quando esse alguém se diz seriamente preocupado com o fato de os homens terem o pênis amputado por falta de limpeza. Enfim, quando alguém manifesta tantos sintomas, é razoável deduzir que tem intensa angústia de castração. Não quer dizer muito, mas pode melhorar a maneira como contestamos sua prática. E entender um pouco a atração que exerce sobre o mundo masculino.
Sinto que avancei alguns milímetros nesse tema, na verdade continuação da coluna de segunda-feira passada sobre a Teologia da Prosperidade e seu fascínio na política. Mas é devagar e com cuidado que vamos encontrar uma alternativa diferente da luta na lama, tipo de luta em que não há de fato vencedores.
A estrutura política do país, com a elite de costas para a sociedade, contribuiu muito para a produção de aventureiros. Mas a fórmula também pode envelhecer. A bala do cavaleiro solitário contra um sistema corrompido não dispara mais, a pólvora molhou. Restam outras, como a do empresário de sucesso tentando tornar o governo um negócio produtivo.
Mas é preciso reconhecer que algo precisa mudar no universo político. Senão, viveremos em sobressalto com a constante aparição de aventureiros.