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Nos tempos do latim. Por Antonio Contente

Nos tempos do latim…tal parente emerge agora nesta crônica porque, além de ter celebrado suas missas na tal “língua morta”, era o que, antigamente, chamavam de latinista. Falava o idioma fluentemente, o que muito o auxiliou na sua vida que ultrapassava a simples dimensão de pároco.

Latim

         Do verdadeiro tsunami de emoções que foi a morte, ocorrida em abril de 2005, e o sepultamento do papa João Paulo II, pintou um pequeno detalhe, durante as cerimônias fúnebres, talvez despercebido para a maioria das pessoas, mas que captei imediatamente no ar. Foi o fato de ter sido em latim a missa celebrada na manhã do enterro pelo depois Bento XVI, entronizado no trono da igreja. Ora, amigos, segundo o cardeal Hummes, referindo-se a Lula, cada pessoa é católica à sua maneira. A partir dessa premissa, e considerando que até FHC, reluzente ateu, presente às exéquias em Roma, comungou, também guardo minhas especificidades. E pra mim como católico, digamos assim, de convicções nada sólidas, missas tinham mais, mesmo, que continuar a ser celebradas em latim.

         Nos meus tempos tenros, assim era. É verdade que não entendíamos patavina do que o sacerdote falava, todavia, nessas liturgias, o importante é o envolvimento espiritual. E, convenhamos, o idioma defenestrado parecia muito melhor para nos conduzir aos páramos. Eu navegava com a sonoridade das palavras que o escritor e pianista Antonio de Pádua, ex-coroinha, conhece muito bem. Se algum dia vi divindades celestes rondando a nave da Basílica de Nazaré, em Belém do Pará, foi então…

         Tive um parente, primo do meu pai, que foi padre; aliás, morreu cônego. Faz aí um par de anos eu estava em casa, dormindo, coisa de duas da matina, quando o telefone tocou. Era o já falecido escritor J. Toledo, então formidável cronista do “Correio Popular”, de Campinas, que berrava:

         — Quem é Cupertino Contente, Antonio, quem foi Cupertino Contente???!!!

         Apesar do susto, caí logo na realidade. Com a paciência possível na circunstância, expliquei ao famoso colega de quem se tratava. E quis, naturalmente, saber como, àquela hora improvável, ele descobrira tal figura.

         — É que estou fazendo uma pesquisa para o meu próximo livro, aqui no “Who’s Who” (Quem é Quem) de 1939, e descobri este nome, Cupertino Contente. É um dos poucos brasileiros verbetados, e certamente tem alguma coisa a ver com você.

         Bom, a verdade é que tal parente emerge agora nesta crônica porque, além de ter celebrado suas missas na tal “língua morta”, era o que, antigamente, chamavam de latinista. Falava o idioma fluentemente, o que muito o auxiliou na sua vida que ultrapassava a simples dimensão de pároco. Foi também deputado, secretário de Estado, catedrático, poeta, romancista, biólogo, botânico, entomologista e astrônomo. Porém acho que o latim o livrou de boas quando exerceu a atividade parlamentar. Pois sendo um padre considerado anticonvencional, uma vez que só trajava batinas de tropical inglês, só se perfumava com essências francesas, só baforava charutos holandeses e só deglutia uísques escoceses, além de ser um impecável “cordon bleu”, permitia certa abertura para seus adversários políticos. Porém, como a Assembléia Legislativa do Pará na época, igualzinha o Congresso Nacional hoje, era constituída, em sua maioria, por iletrados, Cupertino sempre respondia aos ataques que sofria em latim.

 Certa tarde um inimigo discursou para dizer que se sentia desconfortável ao vê-lo celebrar missas. Até porque o famoso clérigo morava numa aprazível vivenda onde tinha, a servi-lo, competentíssima governanta sobre a qual, com certeza injustamente, insinuavam coisas. Imediatamente meu belo parente respondeu:

— “A bove ante, ab asino retro, a stulto undique caveto”…

Tradução: “Guarda-te do boi pela frente, do burro por detrás, e do imbecil por todos os lados”… O adversário, espantado, achou que estava sendo elogiado, que aquilo era uma sagrada fala de missa. Desde então passou a, reverente, não perder as celebrações do, pra mim, piedoso sacerdote. Que, com certeza, está no céu.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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