As plataformas digitais de trabalho: desafios para o Direito
As plataformas digitais de trabalho: desafios para o Direito
Por Marcela Bocayuva e Paulo Roberto Dornelles Junior
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO CONSULTOR JURÍDICO, CONJUR EDIÇÃO DE 24 DE AGOSTO DE 2024
Em 2005, a Amazon lançou um novo serviço digital: Amazon Mechanical Turk. O nome foi inspirado no turk, uma máquina automática jogadora de xadrez criada por Wolfgang von Kempelen no século 18, que supostamente derrotou figuras como Napoleão Bonaparte e Benjamin Franklin, mas havia um detalhe: o turk não era uma máquina realmente automática.
Havia um mestre de xadrez escondido dentro da caixa, manipulando as peças. Esse conceito foi escolhido por representar o novo serviço da Amazon: uma plataforma online que oferece praticamente qualquer tipo de serviço digital. Transcrição, avaliação, marcação de imagens, pesquisas, redação, etc., mas quem é o trabalhador que realiza essas tarefas? Quem é o tomador desses serviços?
Múltiplos prestadores de serviços e contratantes situados em praticamente qualquer lugar do mundo. Esse é o conceito de “crowdwork”: uma quantidade extraordinária de demandas para pequenas tarefas oferecidas a uma multidão indistinta de trabalhadores. Quais leis se aplicam a esse tipo de trabalho? Quem tem jurisdição para lidar com essas questões? Os trabalhadores dessas plataformas são empregados? Seriam dezenas de microcontratos de emprego com múltiplos clientes – ou empregadores? Ainda não temos respostas definitivas para nenhuma dessas questões.
Existe, no entanto, outro modelo mais próximo da nossa realidade diária. Plataformas que operam mundo físico – e que provavelmente utilizamos. Este modelo é classificado como trabalho de plataforma “on demand” [1] e envolve sobretudo os serviços de transportes e entregas. Exemplo conhecido é o aplicativo Uber, empresa que revolucionou a maneira de se locomover em grandes cidades a partir de 2009.
Ao contrário do modelo de “crowdwork”, que utiliza o trabalho remoto, esse modelo permite identificar, por exemplo, o local em que o trabalho é fisicamente realizado. Questões como as leis aplicáveis e juiz competente para decidir sobre eventuais disputas tornam-se mais palatáveis – embora, no entanto, não sem dificuldades.
Padrão global: plataformização do trabalho
As plataformas digitais de trabalho permitem aproximar em escala demanda e oferta de serviços, virtuais ou não. A expansão desse modelo, que usualmente classifica prestadores de serviços como autônomos, é um fenômeno mundial que se denomina de “plataformização do trabalho” [2].
Essa é a denominada “gig economy”. As dimensões desse novo segmento da economia são crescentes. Relatório da Mastercard/Kaiser Associates destaca o crescimento da “gig economy”: de US$ 204 bilhões, em 2018, para US$ 455 bilhões em 2023 (projetados). O Brasil é um dos países que mais contribuem para esse crescimento acelerado, com taxa de crescimento projetada de 129% até 2023 (acesse aqui)
Em 2022, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimou que cerca de 1,5 milhão de pessoas prestam serviços por meio dessas plataformas, representando 1,7% da força de trabalho no setor privado (acesse aqui)
Controvérsias jurisprudenciais e projetos de lei
Como em muitos outros países, também no Brasil observa-se dificuldade no enquadramento judicial desses trabalhadores no conceito tradicional de empregado. A legislação trabalhista foi criada com base no modelo do trabalhador da revolução industrial, com jornada de trabalho definida e local de trabalho específico, aspectos que não se aplicam facilmente ao trabalho de plataformas.
Como não poderia ser diferente, o tema é objeto de significativa controvérsia jurisprudencial. No Tribunal Superior do Trabalho, o cerne da discussão envolve o enquadramento ou não destes trabalhadores no conceito legal de empregado [3].
No Supremo Tribunal Federal, examinam-se também os princípios constitucionais da livre iniciativa, legalidade, livre exercício de trabalho e livre concorrência [4]. Observa-se que precedentes recentes da Suprema Corte resguardando os referidos princípios a repercutir no julgamento [5].
Importante número de projetos de lei no Brasil busca regulamentar o trabalho por plataformas. Diversos desses projetos pretendem criar uma terceira categoria, intermediária entre os autônomos e os empregados.
Neste ano (2024), o governo Lula apresentou projeto de lei classificando esses trabalhadores como autônomos, mas assegurando diversos direitos típicos de empregados como jornada de trabalho de oito horas diárias, salário mínimo por hora de trabalho, remuneração mensal mínima, dentre outras garantias, inclusive previdenciárias.
Conclusão
Estabelecer definições gerais e abstratas sobre o tema não é tarefa simples, tanto no âmbito judicial quanto no legislativo. Um enquadramento amplo desses trabalhadores como empregados pode gerar conflitos com situações em que, historicamente, se reconhece a natureza autônoma do trabalho.
Por outro lado, categorizá-los como autônomos ou em uma terceira categoria pode criar vantagens estratégicas para o setor, que nem sempre se justificam de maneira uniforme. Portanto, é essencial considerar as especificidades de cada caso para evitar generalizações que possam gerar injustiças ou distorções no tratamento dessas relações de trabalho.
[1] Para a elegante classificação, consultar: DE STEFANO, Valerio, The Rise of the ‘Just-in-Time Workforce’: On-Demand Work, Crowd Work and Labour Protection in the ‘Gig-Economy’ (October 28, 2015). Comparative Labor Law & Policy Journal, Forthcoming, Bocconi Legal Studies Research Paper No. 2682602. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2682602.
[2] O impacto das inovadoras tecnologias das plataformas digitais na economia e no direito do trabalho pode ser examinado em DORNELLES JUNIOR, Paulo Roberto. A plataformização das relações de trabalho: como as tecnologias inovadoras das plataformas digitais impactam na economia e desafiam as estruturas do Direito do Trabalho. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.
[3] E-RR-1000123-89.2017.5.02.0038 e E-RR-100353-02.2017.5.01.0066.
[4] RCL 64018 e o RE 1446336.
[5] RE 1054110 (2017), ADPF 324 (2018), RE 958252 (2018), ADPF 449 (2019) e ADC 48 (2020).
- Marcela Bocayuva
é advogada, mestre em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), especialista pela Fundação Escola Nacional do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT), certificada em Liderança e Negociação pela Universidade de Harvard, especialista em Direito e Economia pela Universidade de Chicago (Uchicago), estudante visitante na New York University (NYU) e coordenadora da Escola Nacional da Magistratura (ENM).
- Paulo Roberto Dornelles Junior
é juiz do Trabalho, mestre em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universitat Pompeu Fabra (Espanha), mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), diretor-adjunto da Justiça do Trabalho na Escola Nacional da Magistratura, vice-presidente da Comissão de Estudos de Direito Público e Social da União Internacional dos Magistrados e autor de A Plataformização das Relações de Trabalho (Tirant lo Blanch, 2020).