Riscos da instabilidade jurídica. Por Marcela Bocayuva
Riscos da instabilidade jurídica para a confiança nas instituições
O DIREITO É PÚBLICO
… A preservação da garantia constitucional da segurança jurídica, tem por enfoque, fortalecer os vínculos de confiança entre o cidadão e o Estado, por meio da implementação de uma cultura e mentalidade voltadas para a segurança jurídica e para a qualificação das decisões públicas.
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO CONSULTOR JURÍDICO, CONJUR EDIÇÃO DE 19 DE JULHO DE 2024
Entende-se por segurança jurídica a garantia fundamental, consubstanciada no artigo 5º XXXVI da CF, como a preservação da estabilidade das relações jurídicas. Dela derivam os seguintes mandamentos: a defesa de situações jurídicas consolidadas na forma da coisa julgada, do ato jurídico perfeito e do direito adquirido; a proibição de mudanças abruptas ou bruscas, por meio do princípio da não-surpresa; além da garantia do estabelecimento de regras de transição. [1]
Por outro lado, a (in)segurança jurídica é um dos principais elementos que fazem o Brasil figurar na 83ª posição no índice do World Justice Project — Rule of Law Index. A pontuação brasileira, no ano de 2023, foi de apenas 0,49, em um total possível de 1,0. Essa nota foi uma das piores já obtida pelo país, que ao invés de avançarmos, nos coloca em posições perto da Venezuela, que ocupa a 142ª posição de 142 países com uma pontuação de 0,26 de 1,0.
A preservação da garantia constitucional da segurança jurídica, tem por enfoque, fortalecer os vínculos de confiança entre o cidadão e o Estado, por meio da implementação de uma cultura e mentalidade voltadas para a segurança jurídica e para a qualificação das decisões públicas.
A instabilidade, a falta de clareza e de previsibilidade em relação às leis e normas, por outro lado, geram a falta de credibilidade das instituições, do Poder Judiciário e do país como um todo, tanto no plano interno como externo. Todos esses fatores provocam, ademais, o aumento de custos com litigância, além de prejuízos na imagem do país como potência econômica a nível internacional, tornando o país menos atrativo e seguro para investimentos.
Nas palavras do professor Jeremy Wladron em seu artigo The Concept and the Rule of Law by Jeremy Waldron :: SSRN,
“O Estado de Direito é visto como um ideal frágil, mas crucial, e que é invocado de forma apropriada sempre que os governos tentam impor sua vontade por meio de ações arbitrárias e opressivas ou contornando as normas e procedimentos estabelecidos nas leis ou na constituição de um país”. “Interferir nos tribunais, prender alguém sem justificativa, conduzir processo sem quaisquer garantias de devido processo, manipular a constituição para obter vantagem partidária — todos esses são vistos como abusos do Estado de Direito.”
E ainda nos traz o exemplo do impasse eleitoral na Flórida em 2000, em que o Estado de Direito foi invocado, por todos os lados e em todas as questões, culminando na famosa dissidência do juiz Stevens no caso Bush v. Gore: “Embora talvez nunca saibamos com total certeza a identidade do vencedor da eleição presidencial deste ano, a identidade do perdedor é perfeitamente clara. É a confiança da nação no juiz como um guardião imparcial do Estado de Direito.”
A imprevisibilidade das decisões judiciais acentua as mazelas resultantes da exasperação da insegurança jurídica cada vez mais tácita e intensa, o que enfraquece não somente o próprio regime democrático, mas, principalmente, as próprias relações econômicas e comerciais que se alicerçam neste pilar basilar, que acaba por impor severas perdas financeiras ao país.
Não é demais imaginar, portanto, que, diante de um complexo sistema tributário, políticas públicas sendo descontinuadas diariamente (com novas iniciadas mediante processos licitatórios frágeis), mudanças frequentes de entendimentos acerca da interpretação da Lei (seja através do Poder Legislativo — promovendo alterações no texto normativo — ou pelo Poder Judiciário), a propagação de litígios é incalculável, frequente e inevitável.
Se, de um lado, a insegurança jurídica afasta relações comerciais e investimentos no país, de outro abre portas para leques cada vez mais amplos de modalidades e formatações de negócios, sendo que até a própria volatilidade já citada cria novas possibilidades de estratégias empresariais, a depender da habilidade dos percalços jurídicos previamente delineados.
Conclusão
Assim como na democracia, onde não basta um regime se autodenominar democrático para ser reconhecido como tal, a segurança jurídica não pode ser avaliada apenas pelo nome que se atribui a um sistema de leis. Um verdadeiro sistema jurídico deve ser mais do que um simples conjunto de comandos e controles; ele deve operar de maneira que realmente respeite os princípios do Estado de Direito. Portanto, é fundamental que sejamos exigentes ao usar termos como “lei” ou “sistema jurídico”.
Nem todo sistema que se autodenomina jurídico merece esse reconhecimento sem antes ser examinado em seu funcionamento e prática. Da mesma forma que avaliamos a legitimidade de um regime democrático, devemos avaliar a validade e a eficácia de um sistema jurídico.
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[1] MENDES, Gilmar Ferreira, CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Manual Didático de Direito Constitucional. 1ª Ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 198.