Desconfortos locais: triunfo da máquina. Por Aylê-Salassiê F. Quintão
Desconfortos locais… Inconfessadamente, usando o Supremo Tribunal Federal, onde tem a seu favor a maioria dos ministros, o Planalto parece querer desnudar essa excrescência do “Orçamento Impositivo” para manter um certo controle sobre as candidaturas de oposição…
E “last but not least” os presidentes dos três Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – reuniram-se para tentar moralizar o “Orçamento Impositivo”, de acesso direto e fácil dos congressistas ao dinheiro público. Uma tal “emenda Pix” dispensa, inclusive, a indicação da área ou o projeto da prefeitura aos quais se destinariam. Esses foram institutos de gestão financeira que o Congresso criou para si com o fim de conseguir a liberação compulsória do dinheiro das emendas parlamentares e o seu acesso, após suportar um controle sistemático pelo chefe do Executivo (gestor do Tesouro). São introduzidas no Orçamento da União, anualmente, em valores variáveis entre R$ 38 a 69 milhões para cada um dos 513 deputados e 81 senadores respectivamente aplicarem nos municípios de origem.
A dúvida que sempre presidiu a manobra é o desconhecimento geral sobre o que esses políticos fazem do dinheiro, sobretudo, em tempos de eleições? Para financiar o pleito, partidos e candidatos já dispõem de um Fundo Especial de Financiamento de Campanha, instituído pela Lei 13.487, de 2017. O valor desse chamado “fundão” foi definido em R$ 2 bilhões para as eleições deste ano. Aplicado na saúde daria para construir 200 hospitais, segundo cálculos feitos pelos próprios parlamentares.
Agora veio a Proposta de Emenda Constitucional que anistia dívidas de estados e municípios. Como resultado, para o pleito municipal de outubro, até o dia 9 de agosto haviam dado entrada na Justiça Eleitoral 160.483 pedidos de registro de candidatura de vereadores, prefeitos e vice-prefeitos para os 553 municípios brasileiros.
No último dia 16 de agosto, começou oficialmente a campanha eleitoral para a escolha desses novos prefeitos e vereadores. Extraoficialmente, ela já vem rolando desde o início deste ano por meio de inocentes mobilizações: visitas, inaugurações de obras paralisadas há 20 anos, desavenças públicas de candidatos e partidos difundidas amplamente por uma suposta mídia espontânea.
E, assim, sabidamente, os governantes de plantão vão impregnando o cenário com imagens, falas e discussões quase sempre inoportunas, causando desconfortos para os cidadãos locais. Embora nos antigos pleitos, sobretudo no Nordeste, a reação fosse no cano do revólver, o ex-governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, cunhou este belíssimo chavão eleitoral apaziguador: “Falem mal, mas falem de mim.”
Ardilosamente, o Congresso foi, entretanto, provocado pelo STF com a desconfiança sobre os destino dos R$ 50 bilhões em emendas parlamentares neste ano eleitoral. O Supremo resolveu finalmente cobrar transparência na aplicação individual desse dinheiro. O ministério da Fazenda, que tem nas mãos a chave do Tesouro, já havia anunciado a pretensão de destiná-lo compulsoriamente para o tal PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. O programa inclui ações como a construção de habitações, de escolas, de postos de saúde, carência nacional, numa tentativa de interromper o fluxo fácil de dinheiro público para financiar redutos eleitorais e até alimentar o bolso de alguns.
Inconfessadamente, usando o Supremo Tribunal Federal, onde tem a seu favor a maioria dos ministros, o Planalto parece querer desnudar essa excrescência do “Orçamento Impositivo” para manter um certo controle sobre as candidaturas de oposição. Estão acumuladas emendas, não liberadas, perto de R$ 11 bilhões, e mais RS 4 bilhões deste ano. A elas só teriam acesso imediato os candidatos da situação. As emendas dos que concorrem fora dessa lógica repressiva receberiam seu quinhão depois das eleições. Por isso, é de caráter quase teatral a tentativa de intervenção politizada do Supremo sobre as emendas, exigindo prestação de contas no uso desse dinheiro. Os artifícios contábeis legais são muitos e os ilegais, milhares. É um vício que tem se agravado, a olhos vistos, ao longo do tempo, e que abarca praticamente todos os partidos e a maioria dos parlamentares.
O STF sai em campo na campanha ao fazer a denúncia quanto a obscuridade no uso das emendas orçamentarias destinadas a partidos e parlamentares. Parece ter sentido se, por outro lado, não significasse uma intromissão, no panorama das eleições, em questões que dizem respeito ao Congresso Nacional. Para completar esse quadro intervencionista dissimulado eleitoralmente, acaba por anistiar, adiar e reprogramar o parcelamento das dívidas de estados e municípios brasileiros, próximo de R$ 800 bilhões, e que vem se arrastando, como uma bola de neve, há mais de 40 anos. O nosso economista maior, recentemente falecido, Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura, já dera essa dica: “Dívida não se paga, rola-se“. Assim, com a anuência, e alguns avais do Governo Federal, os governadores e prefeitos aproveitam a oportunidade das eleições para fazer mais dívida e rolar as antigas, deixando os encargos para os que vierem depois.
O ambiente e a propaganda eleitoral sempre foram falseados por conveniências que contribuem para dar perenidade histórica às praticas, valores, famílias, políticos, carismas nem sempre moralmente reconhecidos. Não são, portanto, inteiramente confiáveis. Criam-se partidos e candidaturas para vender, pecuniariamente mesmo, apoios político nas eleições, na Câmara Federal, nas estaduais e municipais. O Superior Tribunal Eleitoral não ignora esse quadro, mas administra o processo a seu modo, ou segundo o modelo historicamente configurado.
Quem está no Poder ou com as chaves do cofre do Tesouro nas mãos projeta-se sempre na vanguarda do modelo. Em geral, a sensatez no manuseio dos recursos públicos é nebulosa, e agrava-se mais em tempos de eleição. Os gestores e administradores das campanhas sentem-se amparados para recorrer, sem pejo judicial, inclusive à captação de contribuições substanciais das empresas e bancos privados.
Esse quadro configura-se em proporções mais modestas nos municípios nos quais surgem, eventualmente, cidadãos capazes de decifrá-lo. A nível federal, quando isso se descortina publicamente, desenrolam-se investigações policiais, no Ministério Público ou em comissões de Inquérito no Congresso, resultando em espetaculosas operações especiais como a dos “Sete Anões”, “Mensalão” e “Lava Jato”. Mas nunca resultam em punições severas no mundo político. E isso: “last, but not least“, há algo mesmo lá a ser resolvido.
Contudo, a reunião dos três Poderes parece mais um “Acordão”. Está dada a largada! Cabe à História resolver.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural, ex-guarda florestal do Parque Nacional de Brasília Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018
Autor, entre outros, de Lanternas Flutuantes:
Português – LANTERNA FLUTUANTES, habitando poeticamente o mundo
Alemão – Schwimmende-laternen-1508 (Ominia Scriptum, Alemanha)
Inglês – Floating Lanterns
Polonês – Pływające latarnie – poetycko zamieszkiwać świat
novo livro de Aylê-Salassiê: TERRITÓRIO LIVRE!