Azar. Por José Horta Manzano
Um caso curioso é o da voz árabe as-sahr (ou az-zahr), presente no falar popular e no árabe ibérico, mas ausente do árabe clássico. Na nossa língua, acabou desembocando em azar, palavra usada geralmente com significado negativo para indicar má sorte, infelicidade, revés…
É interessante observar a que ponto a evolução das línguas é imprevisível. Há casos em que, da mesma raiz, brotam galhos diferentes. De fato, termos que descendem de um mesmo tronco podem, em casos extremos, ter significados divergentes em diferentes idiomas.
Um caso curioso é o da voz árabe as-sahr (ou az-zahr), presente no falar popular e no árabe ibérico, mas ausente do árabe clássico. Na nossa língua, acabou desembocando em azar, palavra usada geralmente com significado negativo para indicar má sorte, infelicidade, revés, contratempo. Os dicionários chegam a abonar o uso de azar em circunstâncias positivas, mas essa acepção não se encontra no falar popular.
Segundo a maioria dos especialistas, os dados (de jogar) introduzidos pelos mouros ‒ que mandaram por sete séculos na Península Ibérica ‒ tinham uma flor pintada em uma das faces. Em árabe hispânico, flor se dizia az-zahr, nome que se estendeu ao dado e, em seguida, ao próprio jogo. Falando em flor, em espanhol moderno, azahar é o nome da flor de laranjeira.
Na língua de Cervantes, o termo azar não costuma ser usado com o significado que tem em português. Utiliza-se geralmente com o sentido de acaso. Para dizer ‘má sorte’, o espanhol, mais dramático, prefere falar em desgracia.
Através do espanhol, a palavra entrou no francês na Idade Média. Naquela época, a grafia ainda não estava estabilizada, o que resultou em formas um tanto fantasiosas sobretudo para palavras importadas.
O azar espanhol foi grafado hazard, com agá inicial e dê final. Mais tarde, o zê foi substituído por um esse, mas o agá inicial e o dê final permanecem até hoje. Hasard não tem sentido positivo nem negativo. Designa apenas o acaso, o imprevisível. Par hasard, expressão do dia a dia, significa por acaso.
Já em italiano, a mesma voz escorregou para um sentido de risco, de perigo, de ato temerário. Entrou na língua através do francês, o que explica a preservação do dê: azzardo.
O inglês também importou o termo do francês medieval, daí ter guardado a grafia da época: hazard. Diferentemente do que aconteceu em francês, o sentido da palavra não se modificou. Até hoje indica risco ou perigo. Hazardous se diz do que é perigoso, que comporta grande risco.
Temos aí curioso caso de uma palavra que tanto pode espargir perfume de flor de laranjeira quanto evocar grande perigo. Não há comprovação de que uma coisa tenha a ver com a outra.
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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