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Cambaxirra

Entre paredes e jardins. Por Antônio Contente

Entre paredes e jardins… tinha ante meus olhos o espaço das samambaias, as nuances perfeitas das íris azuis, do jasmim chinês, dos crisântemos, do agapanto e, como não poderia deixar de ser, a carícia das hortênsias…

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Escrevi em algum lugar, em algum tempo, que todas as pessoas deveriam possuir uma casa, necessariamente em setembro. Certamente não disse isso influenciado apenas pela circunstância de que aqui, pelo Sul/Sudeste, em tal mês começa a Primavera. O que me tomou talvez tenha sido o fato de que em algum outro período dos trinta dias que marcam o número 08 no calendário eu tenha experimentado, às vezes até sob telhas vãs, felicidades marcantes; daquelas que remetem às ânsias de guardá-las.

         Assim foi que, mesmo estando a correr um chuvoso janeiro quando entrei pela primeira vez na casa da senhora Cy, aqui em Campinas, um envolvimento logo me acenou na dobra da luminosidade que clareou o que passei a ver. Ora, amigos, vamos falar a verdade, ali estava uma casa, em setembro. Abre-se a porta de entrada e, antes mesmo de pisar na sala, senti o aroma que dela vinha. Poderia ser da cobertura das poltronas, d’algum vaso aqui e ali, dos tapetes que Aladim, o da Lâmpada Maravilhosa, talvez tenha utilizado em voos nas constantes buscas da princesa. Ou, simplesmente, o que me tomou foi a doce presença da proprietária com sua aura; integrada à fluidez não só daquela, mas de todas as tardes.

         Senti pouco depois que, aberto o vidro que dava para o jardim, tinha ante meus olhos o espaço das samambaias, as nuances perfeitas das íris azuis, do jasmim chinês, dos crisântemos, do agapanto e, como não poderia deixar de ser, a carícia das hortênsias, quem sabe descendentes das do belo livro de memórias da grande escritora Ana Maria Negrão. Casas que mesmo no primeiro mês do ano são de setembro, abrem caminhos para as emoções do percorrer caules, pistilos, pétalas, androceus e gineceus sobre os quais, nas manhãs, brilham os pingos d’orvalho. Diamantes? Sim, diamantes de preciosidades míticas.

         E que caminhos se mostraram entre os vários canteiros do jardim. Prendo meus olhos num caramanchão a abrigar trepadeira de galhos fartos, e a senhora Cy me conta que, não faz muito tempo, um passarinho ali fez ninho para aproveitar a silenciosa circunstância da área. A bela dona acompanhou o trabalho do casal de emplumados, muito bem escondida pela sombra de um aparador na sala. Passou a consultar todos os seus conhecimentos de ornitologia para detectar a espécie do voador, porém caiu em dúvidas. Até que certa manhã, ao ver a alada criaturinha já em trabalho de chocar os ovos, teve o estalo do cair da ficha. Chegou a gritar:

         — Por Deus, é uma cambaxirra! Uma corruíra, uma carriça.

         E assim foi que na súbita condição de maternidade para bichinhos que só nascem para a alegria de nossos corações, aquela parte da casa se tornou ainda mais de setembro. Se, sob o sol, com farta oferta de nuances de luz. Se, sob chuvas, abertura para se colher, nas mãos em concha, as notas, em moderato cantábile, de partituras em qualquer das claves que deixam escorrer canções que certas nostalgias do passar do tempo só aperfeiçoam.

         A casa da senhora Cy, fui descobrindo no correr dos dias, é abrigo para o cintilar de sonhos perfeitos, cenário ideal para o desdobrar de suspiros das saudades que não doem e das esperanças que são o indispensável alimento para os setembros que nos amparam no feito da perfeição das horas.

         Acompanhei, numa certa tarde em que a senhora Cy abriu suas portas para o repouso de três ou quatro dos meus cansaços, o quanto, ali, as tardes nascem de sementes de emoções acariciantes. É nas tardes, vocês sabem, que são captados os bemóis e sustenidos das melodias mais ternas, as melhores palavras para o dizer d’amores que necessitam ser vividos, e de tudo aquilo que se guarda no coração como o elixir que afasta, para bem longe, qualquer perigo de contágio por certas patologias d’alma.

         É sobre as casas embebidas de setembros, como a da senhora Cy, que as noites, cálidas em Verões de ardores contidos entre os galhos das árvores que sobreiam os muros, cantam para as alegrias que não precisam ser contidas. Ou então para outras que, em frios como os chegados em Outonos, precisam ser levadas para aquele estojo de onde os deuses tiram as meigas tonalidades das auroras. A casa da senhora Cy não recebe, passiva, o significado das manhãs. Dá também a elas a sacralidade do estar à disposição dos cantares de qualquer tempo.

         Por fim diga-se, por último porém não derradeiramente, que a morada da senhora Cy há de ser, pra mim, sempre, uma espécie de templo. No qual entrei naquele janeiro sem nenhuma intenção de orar. Se bem que oração talvez seja repetir, eternamente, que seria muito bom que todas as pessoas pudessem ter uma casa, necessariamente em setembro. Como a senhora Cy tem e por isso é, com toda certeza, tranquilamente plena, ternamente sábia, deslumbrantemente bela e plenamente feliz.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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1 thought on “Entre paredes e jardins. Por Antônio Contente

  1. Que delícia deve ser caminhar pelos jardins da casa da Senhora Cy. Bateu um pouco as saudades do corredor de minha casa em Sampa, carregado de vasos de samambaias e outras que não lembro bem, mas sempre com muito verde. Uma vez, acredito que tenha sido na Primavera, um passarinho fez um ninho em uma de minhas plantas. Tomávamos cuidado ao entrar e sair para que ele não desistisse. Nasceram dois filhotes. Fiz fotos, vou procurar. Tão lindo.
    Imagina, em uma grande cidade, um corredor estreito. Como eu gostaria que fosse um jardim florido!
    Amei a leitura, meu querido amigo. Recordar é muito bom.
    Beijos

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