O que significa, afinal, a palavra humanidade? Por Aldo Bizzocchi
… o ponto que quero debater aqui: a humanidade é uma mera abstração, um conceito elaborado e utilizado por religiosos, filósofos, cientistas sociais e filantropos que veem a espécie humana como uma grande família, na qual todos são irmãos. Nada mais equivocado: sinto informá-los de que a humanidade não existe…
Etimologicamente, humanidade é em primeiro lugar a qualidade de humano, aquilo que nos torna humanos, seja para o bem ou para o mal. É bem verdade que esse termo costuma ser mais frequentemente usado em sentido positivo, como se nossa condição de humanidade fosse a bondade, a generosidade e o altruísmo, quando, na realidade, somos a única espécie animal dotada de maldade, os únicos a praticar a crueldade por prazer.
Mas humanidade passou também, sobretudo a partir do século XVIII, a designar a coletividade dos seres humanos ou, em termos mais cientificamente rigorosos, o conjunto dos espécimes da espécie Homo sapiens (antes dessa data, era mais comum aqui no Ocidente nos referirmos à totalidade dos seres humanos como cristandade, o que implicava, obviamente, que os não cristãos não eram gente).
E é esse exatamente o ponto que quero debater aqui: a humanidade é uma mera abstração, um conceito elaborado e utilizado por religiosos, filósofos, cientistas sociais e filantropos que veem a espécie humana como uma grande família, na qual todos são irmãos. Nada mais equivocado: sinto informá-los de que a humanidade não existe, o que existe para cada espécime de Homo sapiens é o seu bando, isto é, sua tribo, seu bairro, sua cidade, seu estado ou província e no máximo sua nação. Alguns, como os muçulmanos, chegam a considerar a humanidade algo mais amplo, isto é, a soma de todos os indivíduos que professam a mesma fé que eles — aquilo que nós mesmos fazíamos no passado, quando só a cristandade importava.
Na prática, jamais abandonamos nosso instinto tribal, apenas as tribos foram ficando maiores à medida que o progresso aumentava. Nossos antepassados caçadores-coletores já viviam em pequenos grupos, e estes eram para eles a sua “humanidade”. Tanto que esses bandos de não mais que 10 ou 20 pessoas guerreavam entre si na disputa por alimento. Antes da chegada do homem branco, os indígenas da América também guerreavam entre si, tanto que a função social de guerreiro era a condição mais honrosa que um indígena podia ter.
Em sociedades complexas como as ditas “civilizadas”, em que grupos sociais os mais diversos (classes socioeconômicas, etnias, regiões geográficas, gerações, torcidas organizadas de futebol, confissões religiosas, etc.) estão o tempo todo em conflito, a própria noção de nacionalidade se perde, que dirá a de humanidade! Afinal, somos todos brasileiros, mas o criminoso não deixa de assaltar e/ou matar o cidadão de bem, o corintiano não deixa de jogar paus, pedras e coquetéis Molotov em flamenguistas e vice-versa, o branco não deixa de ter preconceito contra o negro, o sulista contra o nordestino, o pastor contra o pai de santo, o baby boomer contra a geração Z e vice-versa, assim como o bolsonarista não deixa de odiar o petista — e mais uma vez vice-versa.
Quando vemos pela TV a fome na África, parece que estão falando de outra espécie animal ou de ETs vindos de outro planeta — aquilo não nos comove, afinal são indivíduos muito diferentes de nós. Mesmo quando a tragédia ocorre perto de nós, como nas recentes enchentes no Rio Grande do Sul, há quem pense: o que me importam os gaúchos, no fundo são alemães falando mal o português!
Os constantes conflitos entre povos, acentuados pelas disputas entre governos e ideologias, a ganância por poder e dinheiro, só mostram que apelar pelo fim das guerras e da miséria, pelo controle das mudanças climáticas e pela salvação do planeta (em última análise, pela salvação da humanidade) não tem tido nenhum efeito, afinal cada um de nós só quer salvar a própria pele ou, no máximo, a pele de seus iguais.
A humanidade, essa abstração de filósofos românticos, vive numa competição de soma zero, em que todos, querendo ganhar, saem perdendo.
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Aldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.
Acaba de lançar, pela Editora GrupoAlmedina,
“Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”
Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br