Fluctuat nec mergitur. Por José Horta Manzano
O espetáculo de Paris desempoeirou essa tradição. Fazendo jus à divisa da cidade, que é a frase latina “Fluctuat nec mergitur” (Flutua, não afunda), o tema central foi o Rio Sena, curso d’água às margens do qual a cidade cresceu.
Tanto anunciaram, que fiquei com vontade de assistir à transmissão do espetáculo de abertura dos JO de Paris. Fiz bem em ligar a tevê sexta-feira passada. A bela apresentação foi realmente diferente do que se costuma ver nesse tipo de manifestação esportiva.
Até as Olimpíadas de Tóquio (2021), a representação de abertura sempre se fez num estádio. Cantos e danças eram programados para a parte central enquanto as delegações desfilavam dando uma volta olímpica. O espetáculo de Paris desempoeirou essa tradição. Fazendo jus à divisa da cidade, que é a frase latina “Fluctuat nec mergitur” (Flutua, não afunda), o tema central foi o Rio Sena, curso d’água às margens do qual a cidade cresceu.
O desfile das delegações seguiu a ordem protocolar. A primeira a desfilar é sempre a Grécia, país de origem dos JOs da era moderna. Em seguida, vêm as nações, na ordem alfabética seguindo a língua do país sede, país este que é sempre o último a desfilar.
Tirando a chuva, que embaçou um pouco o ambiente festivo, o entretenimento estava bem dosado. Certas minúcias, dirigidas mais ao público interno do que à plateia internacional, escaparam aos observadores estrangeiros.
Um assunto que anima conversas e está entre os temas principais dos partidos da extrema direita identitária, como o Agrupamento Nacional de Madame Le Pen, é a chegada à França de migrantes originários de antigas colônias, como Argélia, Marrocos e países da África negra.
Os “filósofos” desses partidos nutrem a esperança de terem sido os últimos a entrar na barca. Gostariam que a entrada fosse barrada a todos os que quiserem entrar. Na peculiar fantasia desse pessoal, a França continuará para sempre pura, branca, católica, livre de LGBTs, de africanos, de estrangeiros em geral. E fora da União Europeia.
O fio condutor do espetáculo foi justamente a diversidade da França moderna, que já deixou há muito tempo de ser uma sociedade exclusivamente branca e cristã.
A cantora Aya Nakamura, francesa de pele escura e origem africana, ganhou destaque na festa – afinal, é a cantora de língua francesa mais ouvida no mundo todo, com zilhões de seguidores nessas plataformas preferidas pela juventude.
A responsabilidade de cantar A Marselhesa, hino nacional francês, foi confiada a uma mezzo-soprano negra.
A tarefa de ser porta-bandeira da delegação francesa foi atribuída a uma atleta negra.
Por um instante, num dos quadros do espetáculo, alguns passos de dança fizeram um aceno mais que evidente a um trisal que se compõe em cena e se tranca num aposento.
Um dos quadros do espetáculo evocou a Santa Ceia, superconhecida obra de Leonardo da Vinci. A apresentação, no entanto, não se fez num ambiente de piedade religiosa. Foi, antes, no gênero burlesco, em que personagens escapados de um quadro de Fernando Botero fizeram que a contrição fosse substituída pela comicidade.
Enxerguei nesse quadro um aceno a cidadãos muçulmanos, que são legião no país. Os maometanos mais ciosos, como se sabe, não permitem que esposa e filhas saiam à rua sem o véu islâmico; tampouco admitem alusões jocosas à sua religião. No meu entender, brincar com símbolos religiosos cristãos foi como dizer aos islâmicos rigoristas: “Estão vendo, com a nossa religião, podemos brincar! Está na hora de vocês fazerem como nós e adaptarem suas práticas religiosas ao mundo moderno!”. Foi assim que entendi.
Como vocês podem imaginar, essas piscadelas em favor da quebra de barreiras entre os franceses antigos e os de imigração recente provocou um forrobodó nos ambientes de extrema direita. Os políticos mais exaltados se precipitaram nas redes para denunciar o espetáculo “woke” e indigno de uma edição francesa das Olimpíadas.
Parece que até no Brasil, ainda que não tenham nas mãos as chaves para resolver o problema, nossos frágeis (mas barulhentos) extremistas também se manifestaram. De todo modo, esses grupelhos são constituídos de bagunceiros profissionais. Não costumam se dar ao respeito, o que é um convite para serem tratados com desrespeito.
Deixe estar. Podem ladrar à vontade, que a caravana continua a flutuar. Sem nunca afundar.
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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Flutua, não afunda. Designa muito bem a abertura dessas Olimpíadas. Afinal, todos nós bem sabemos o tipo de “objeto” que é notório por não afundar, certo?