Duas crianças, dois países, duas tragédias. Por Paulo Renato Coelho Netto
… Duas crianças raquíticas e famintas. A primeira sob os vigilantes olhos do descaminho, tráfico e narcotráfico do Paraguai…
Fronteira do Brasil com o Paraguai. De um lado da rua, Ponta Porã, Mato Grosso do Sul. Do outro, Pedro Juan Caballero.
Uma avenida separa os dois países. No meio um canteiro de terra batida e grama surrada. Pessoas apressadas cheias de sacolas. Uma sensação de abandono e caos completa a paisagem.
Um menino aparentando 12 anos, no máximo, se aproxima e oferece doces e balas. Brinco com ele:
– Se fosse bala de 38 eu compraria.
O garoto vai embora em direção ao Paraguai, no mesmo instante que me esqueço dele.
Dez minutos depois ele me encontra no mesmo lugar, trazendo nas pequenas mãos uma caixa de munição cheia de balas 38.
No mesmo instante, olha para mim, levanta a camiseta e diz com sotaque espanhol acentuado, mostrando um revólver novinho do mesmo calibre:
– Tem este também, señor.
Duas crianças que nunca vou esquecer. O paraguaiozinho raquítico e um menino de sete anos, no lixão de Itaquaquecetuba, na região metropolitana de São Paulo.
Trabalhava como repórter apurando uma denúncia de que ali também se usava para descarte de lixo hospitalar, o que é proibido.
O menininho do lixão me ofereceu um iogurte que acabou de encontrar em uma montanha de resíduos, detritos, ratos, moscas enormes e animais mortos.
– Qué, tio? Pode comer. Ainda está bom.
Se naquele momento tivesse pousado um disco voador na minha frente não teria perdido a fala como diante daquela cena.
Este garoto proporcionou um dos maiores aprendizados de brasilidade da minha vida, um país praticamente tomado pela corrupção, esperteza e indiferença.
Cleptocracia em avançado estágio de decomposição.
Imerso na mais absoluta condição de miséria, ainda cabia bondade suficiente no coração daquele menino para oferecer e repartir comigo o tesouro achado em forma de iogurte de morango vencido.
Após tantos anos, a frase ainda ecoa dentro da minha cabeça:
– Qué, tio? Pode comer. Ainda está bom.
Uma criança abandonada no lixo pelo Estado personifica o que entendemos por futuro.
Este menino deve ter crescido invisível para a sociedade.
É bem provável que não tenha estudado, feito um curso técnico ou se formado.
Será, se chegar lá, um idoso em condições de miséria, igualmente desprezado pelo Estado.
Desses que você vê na rua e não enxerga, que cuidam de carros, vendem frutas, pedem dinheiro, fazem bico como carroceiros, vendedores de picolé ou passam a noite como guardas-noturnos cochilando em cadeiras desconfortáveis em frente a casas luxuosas.
Assim como a canalhice dos parasitas do poder, a humilhação é repassada entre gerações pobres no Brasil.
Após morrer sozinho, a família do velho, que peneirava o lixo e comia sobras de iogurte vencido quando criança, ainda vai ter que suplicar para a prefeitura por um caixão humilde e uma cova rasa no cemitério municipal.
Sepultado, finalmente irá se igualar aos seres humanos que o trataram como desigual.
A morte não distingue reis, papas, súditos, intelectuais, analfabetos ou mendigos, seja em caixões de mogno, revestidos com chumbo ou numa fogueira às margens do rio Ganges.
Fora da escola, o franzino paraguaio e o menino do lixão também vão passar pela vida sem saber se tinham aptidão para humanas ou exatas.
A vida para eles, desde o nascimento, já havia decretado que seria exatamente desumana.
Ambas as histórias aconteceram há mais de 25 anos.
Duas crianças raquíticas e famintas.
A primeira sob os vigilantes olhos do descaminho, tráfico e narcotráfico do Paraguai, vendendo armas e munições e o que mais fosse pedido.
Desconfio que se tivesse insinuado que compraria qualquer droga, no lugar de doces, o menino teria voltado com o entorpecente com a mesma naturalidade de quem vende jujuba.
Salvo algum evento extraordinário, ou um milagre de Nossa Senhora de Caacupê, santa padroeira do Paraguai, seu destino marginal já estava traçado.
Uma vez recrutado, a morte é a única forma de deixar o crime.
O menino no lixão de Itaquaquecetuba, exposto a todo tipo de perigo e doenças, em um dia da semana que poderia estar na escola das 7h às 17 horas.
Mais uma criança que deveria deixar o colégio somente após o jantar e de banho tomado.
O garoto voltaria para casa limpinho, com a barriguinha cheia e repleto de sonhos para realizar na vida.
Talvez, se a tia da cantina deixasse, poderia até levar para a mãe um pouco da gelatina que sobrou do jantar.
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Instagram: @paulorenatocoelhonetto
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Paulo Renato Coelho Netto – é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”. Vive em Campo Grande.