Cemitério para anjos (*). Por Paulo Renato Coelho Netto
… falo para a caixinha, rindo para não chorar, que aquilo é o melhor que eu poderia conseguir. Definitivamente, Campo Grande precisa de um cemitério para enterrar animais, um cemitério para anjos… (*)
Quem já teve ou tem o privilégio de ter bicho reconhece que com o tempo a relação vai ganhando um grau de cumplicidade que não se sabe quem cuida de quem. Você dele ou ele de você.
Frederico chegou em casa com medo, desconfiado, com apenas três meses de idade.
Assim que foi colocado no chão saiu correndo para se esconder no banheiro. Tinha medo e não sabia que aquelas pessoas ali estavam dispostas a cuidá-lo integralmente. Mais que isso: amá-lo.
Como toda nova relação, ele precisava de tempo para saber em quem ou quanto se deve confiar.
O gato difere do cachorro pela sensibilidade. É um animal místico e com o Frederico não era diferente.
Ele adorava crianças e pessoas que gostavam de animais e em especial gatos, claro.
Quando chegava uma visita que não gostava de animais, em especial gatos, claro, por incrível que pareça, ele simplesmente desaparecia dentro do apartamento.
Sumia. Ninguém o encontrava.
Só aparecia novamente, com aquela cara de alívio, quando a pessoa ia embora.
Dizem que com plantas é pior. Samambaia chega a secar e não ir mais para frente dependendo dos olhos da visita.
Se for invejoso e fizer um daqueles elogios, tipo nossa, que planta linda é tudo que precisa para morrer.
Vem daí, provavelmente, o dito popular olhos de secar pimenteira.
Oscar Niemeyer, nosso maior arquiteto, diz que a vida é um minuto, um sopro. Quando ouvi isso pela primeira vez fiquei apavorado com a sentença, mas é verdade. A vida é um minuto.
Tudo passa muito rápido e com o Frederico, um gato persa cinza, não foi diferente.
Viveu quinze anos, o que não é pouco para um felino.
Durou tanto graças aos bons tratos que recebeu em especial da avó-mãe dele, uma senhora de quase oitenta anos que tinha no Frederico muito mais que um gato, um amigo, um companheiro leal e fiel de todas as horas.
A morte veio para o Frederico em uma tarde de primavera. Deixou de comer no domingo.
Deu nele aquele banzo que precede a morte e, na terça-feira, foi para a clínica para morrer na quinta-feira ao meio dia.
Quando a relação é de amor, existem compromissos tácitos que são levados aos extremos, como cuidar bem até mesmo depois da morte.
Procuro saber com o veterinário qual era o procedimento adotado em Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, para enterrar animais domésticos.
Fico sabendo que existe um protocolo no qual a clínica comunica a prefeitura que se encarrega do ofício.
Até aí tudo bem. Mas para onde o corpo é levado? Para o lixão, segundo apurei.
Educadamente o veterinário diz que o destino seria o aterro sanitário, coisa que não existe na cidade.
O que temos é lixão a céu aberto, cheio de urubus, ratos e baratas entre crianças famintas e esquálidas e pessoas desamparadas, esquecidas da sorte.
Uma vergonha em tempos ecologicamente corretos. Uma vergonha em qualquer tempo. Portanto, um lugar para onde o Frederico jamais iria.
Os corpos dos animais mortos em Campo Grande são enterrados em vala comum no lixão. Um empilhado sobre o outro.
Uma cena digna de Auschwitz onde judeus – mulheres e bebês inclusive – eram exterminados na Segunda Guerra Mundial e descartados nessas escavações.
Vejo-me, então, com o corpo do Frederico dentro de uma caixinha e uma pá na outra mão, nos extremos da cidade.
Encontro no final da tarde um lugar bucólico, silencioso, visitado por araras, tucanos e sabiás para enterrar condignamente o Frederico. Um lago ao fundo completa o cenário.
Nessa hora peço desculpas a ele pelo improviso e falo para a caixinha, rindo para não chorar, que aquilo é o melhor que eu poderia conseguir.
Definitivamente, Campo Grande precisa de um cemitério para enterrar animais, um cemitério para anjos.
(*)Artigo publicado no Correio do Estado no dia 5 de novembro de 2010. Atualmente Campo Grande (MS) tem um crematório para pet. O lixão foi isolado, proibindo a entrada de pessoas que não trabalham no local. Opera como aterro sanitário no limite da capacidade desde 2023.
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Instagram: @paulorenatocoelhonetto
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Paulo Renato Coelho Netto – é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”. Vive em Campo Grande.