AFINAL, QUEM SOMOS

Quando lemos livros sérios sobre a formação da nação brasileira, como A Sociedade Perfeita (as origens da desigualdade social no Brasil), de João Fragoso, passamos a entender um pouco melhor porque somos o que somos, não o que alguns de nós desejaríamos ser…AFINAL, QUEM SOMOS?
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www.jaimepinsky.com.br – JULHO – 2024

Na Idade Média, grande parte da Europa era cristã e essa era uma condição fundamental da sociedade. O médio prazo era estabelecido a partir de comemorações religiosas, como a Páscoa e o Natal e o curto prazo pelas badaladas dos sinos das igrejas que não registravam apenas a passagem do tempo, mas as mortes, os casamentos e os batizados, por exemplo. Foi só na Era Moderna, e mais particularmente após a divisão do cristianismo, com o surgimento de figuras como Lutero e Calvino é que se estabeleceu uma pluralidade de olhares, de formas de culto, de característica dos sacerdotes, de construção dos templos. A mudança na forma de culto implicava, por sua vez, na alteração no modo de marcar a passagem do tempo.

Quando aprendi alguma coisa sobre Reforma e Contrarreforma, ainda no antigo ginásio, imaginei que deveria caber a cada um de nós o direito e a obrigação de mudar o que estivesse errado na sociedade e resolvi estudar História, para entender melhor o que estava acontecendo e que providências eu poderia tomar para dar um jeito nelas, se estivessem erradas. Naquela época me parecia claro que, para sugerir alterações nas sociedades eu tinha a obrigação de estudá-las, compreendê-las. E, evidentemente, uma obrigação maior de tentar mudá-las para melhor.

Claro que, aos poucos, tomei consciência de que mudanças do porte que eu imaginava não são coisas fáceis de conceber e muito difíceis de por em prática. A complexidade de uma sociedade moderna, com interesses diversos e, frequentemente, conflitantes, exige não apenas uma plataforma de tarefas a serem postas em prática, mas talento para viabilizá-las, considerando, exatamente, o conjunto de interesses a serem compatibilizados.

De resto, nada mais distante do real, do que aquilo que parece ser real, que tentam nos apresentar como real. Exemplo concreto: parece óbvio que deveria haver uma articulação maior entre as escolas brasileiras e as universidades. Estas, com frequência, discutem profundamente o conhecimento, aprofundam-se em pesquisas, mas não têm como aplicar as verdades, ou supostas verdades, descobertas. Por outro lado, a evidente desatualização da formação dos professores (fruto de vários fatores, entre os quais a própria aceleração do ritmo de descobertas e invenções no mundo atual, dificilmente acompanhada pelas instituições de educação formal) poderia ser, pelo menos em parte, suprida pelo contato entre os mestres das escolas e os pesquisadores das instituições universitárias.

Cometi a ingenuidade de me debruçar sobre esse problema e cheguei a montar alguns projetos sobre como esse contato poderia ser desenvolvido, como as universidades federais poderiam ajudar o ensino público brasileiro fazendo com que este se torne mais consequente, atualizado e atraente para os alunos. Como isso, acreditava, poderíamos contribuir para diminuir a distância entre a formação de alunos em algumas excelentes escolas particulares (evidentemente muito caras) e a formação de nossos alunos em escolas públicas.

Acreditando que era minha obrigação colocar essas ideias em prática busquei apresentar os projetos que havia montado a vários ministros de educação de diferentes partidos. Fui sempre bem recebido por eles e, em dois casos, com evidente entusiasmo. Diziam que a ideia era muito boa e seria implantada no Brasil. Nunca foi. Só um dos titulares da Educação foi explícito em dizer que não era uma coisa viável, pois tiraria o poder dos dirigentes municipais que eram peças fundamentais na formação de uma corrente de apoio ao governo federal, seja lá o que isso possa significar.

Enfim, viver, trabalhar no sentido de mudar as coisas para melhor no Brasil é um exercício exaustivo que implica na perda da inocência. Melhor acreditar nos experientes discípulos de Lampedusa, aqueles que pregam alterações que não mudam nada, embora projetem a falsa impressão de que vão mudar tudo. Quando lemos livros sérios sobre a formação da nação brasileira, como A Sociedade Perfeita (as origens da desigualdade social no Brasil), de João Fragoso, passamos a entender um pouco melhor porque somos o que somos, não o que alguns de nós desejaríamos ser.  Não somos herdeiros do capitalismo comercial, somos descendentes de restos medievais. Se não soubermos quem somos, de verdade, nunca poderemos mudar, de verdade.

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JAIME PINSKY: Historiador, doutor e livre docente da USP, professor titular da Unicamp, autor e organizador de 30 livros, entre os quais As origens do nacionalismo judaico.

jaimepinsky@gmail.com

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