Vítima de estupro no banco dos réus
A vítima… Comparar a mulher que pratica o aborto a uma homicida é irracional, teratológico e denota uma insensibilidade humana extraordinária…
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO ESTADÃO, OPINIÃO, EDIÇÃO DE 10 DE JULHO DE 2024
É incrível como os combatentes do aborto, obstinados combatentes, possuem uma visão míope, reta, sem lateralidade, pois não conseguem sequer discutir circunstâncias e aspectos que são inerentes à grave e tormentosa questão. Não querem tomar conhecimento dos motivos que levam à opção da mulher e muitas e muitas vezes apoiada pelo homem de interromper a gravidez. Nem as razões de caráter subjetivo e nem aquelas objetivas ditadas pelas teias armadas pela vida são levadas em consideração.
Agora, estão dando um claro exemplo de sua cegueira, da sua insensibilidade e da evidente redução de sua capacidade intelectiva. Passaram a defender um projeto de lei que equipara o aborto ao homicídio, tendo esse sido realizado após a 22.ª semana de gravidez, mesmo que a mulher tenha engravidado em razão de um estupro.
Ela foi estuprada e engravidou. Passadas 22 semanas, se abortar, estará praticando homicídio. Não cogitaram sequer na hipótese de a gravidez passar desapercebida pela mulher ou pela menina. Não, isso pouco importa, os que se dizem defensores da vida não se incomodam com a vida que o fruto do estupro terá e com o sofrimento da mãe estuprada e do filho não desejado, que poderá se tornar um adulto desajustado e problemático.
Abro um parêntese: todos esses justiceiros e paladinos de uma ética própria, obtusa e que nega o mundo real, são favoráveis à pena de morte. Absoluta irrespondível e insuperável incoerência, pois, ao mesmo tempo que se dizem a favor da vida e contra o aborto, pregam a execução daqueles que cometeram crimes. Dessa forma não são tão favoráveis à vida como apregoam.
Setenta e sete países possuem, uns na sua Carta Constitucional e outros em suas leis, normas que permitem o aborto. Portanto, enquanto ele está legalizado no mundo, no Brasil não só é criminalizado como ainda os pseudoapóstolos do bem e da verdade querem transformá-lo em homicídio. Trata-se de um preocupante retrocesso civilizatório, que poderá dar ensejo a incursões retrógradas em outras áreas do pensamento tacanho e negacionista.
Quero dizer que sou também a favor da vida, mas sou rigorosamente contra a criminalização do aborto. Por razões filosóficas, jurídicas, mas principalmente de cunho social, acho que nesse terreno deve prevalecer a vontade da mulher, e não a do Estado que criminaliza a conduta. A vontade especialmente da mulher pobre. Ela, premida por circunstâncias adversas que a vida lhe impõe e com sua injusta situação social agravada, opta pelo aborto e o realiza em condições tenebrosas, de elevado risco para a sua saúde e dignidade pessoal. É significativo o número de mulheres que vão a óbito nessas circunstâncias.
Alguém dirá que elas correm risco porque querem. Bastaria que seguissem com a gravidez. Argumento leviano e cínico, pois despreza as razões que conduzem milhares de mulheres ao aborto. As suas cruéis e trágicas carências fatalmente acompanharão os filhos caso venham a tê-los.
Não se tenha dúvidas de que a maternidade representava para essas mulheres um sonho a ser concretizado. No entanto, a miséria desfez o sonho e o substituiu pelo terror dos martírios decorrentes da pobreza.
Ao lado das mulheres pobres, há aquelas que não possuem razões de ordem material para abortar, mas abortam. A sua opção é censurável, mas não constitui um crime. A sua escolha está no âmbito de seu arbítrio cuja liberdade o Estado deve respeitar. A reprovação social, de ordem moral e ética, sim, mas não é concebível que o poder público ingresse no âmbito exclusivamente pessoal de suas decisões e a encarcere por haver abortado.
É preciso, inclusive, levar-se em conta múltiplos fatores de ordem emocional, psicológica, fatores relacionados às circunstâncias da realidade de vida que as fazem negar a maternidade.
Voltando à deplorável inovação legislativa que se pretende, comparar a mulher que pratica o aborto a uma homicida é irracional, teratológico e denota uma insensibilidade humana extraordinária. O grave da proposta que tramita na Câmara é que os seus autores e defensores estão movidos exclusivamente por razões de engajamento político-ideológico, sem nenhuma consideração sobre os aspectos sociais, econômicos e humanos que envolvem o aborto. Parece que simplesmente obedecem a uma palavra de ordem por onde navega o conservadorismo e o pensamento da extrema direita, sem orientação de uma bússola indicativa da real vontade da sociedade.
Note-se que tanto o filho da mulher sem recursos quanto o da abastada, se nascerem contra sua vontade, como já dito, se tornarão filhos não desejados, possivelmente não amados e, ainda, sujeitos até ao abandono. Como advogado testemunhei inúmeras rejeições filiais que acarretaram graves consequências.
A questão do filho não querido é colocada para se mostrar que o aborto reúne uma grande gama de circunstâncias e situações humanas que não podem ser relegadas ao esquecimento e nem reduzidas à fórmula do “sou contra o aborto e ponto final”. O radicalismo e o maniqueísmo são incompatíveis com um problema de tamanha magnitude.
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões.