A incoerência do discurso identitário. Por Aldo Bizzocchi
A incoerência do discurso identitário…É a chamada guerra de narrativas. E o pior é que quem está alheio a essa guerra — no caso, a maioria dos falantes — acaba sem saber que palavra ou expressão é melhor usar…
Quando eu era criança, lembro bem que a boa educação recomendava que não nos referíssemos a pessoas negras — ou melhor, afrodescendentes — com os termos negro ou preto. Em vez disso, devíamos usar eufemismos como moreno ou de cor. Por sinal, a expressão pessoa de cor foi importada dos Estados Unidos, onde black person era substituído por colored person.
Na onda da linguagem politicamente correta, outra invenção americana — ou melhor, estadunidense —, passamos a chamar favela de comunidade, gordo de pessoa com obesidade, cego de deficiente visual e depois de não vidente, surdo de deficiente auditivo e agora não ouvinte, paralítico de paraplégico e depois de cadeirante, aleijado de deficiente físico, posteriormente portador de deficiência e agora pessoa com deficiência, abreviado para PCD (parece que até os defensores do politicamente correto ficam cansados ao pronunciar as expressões que eles mesmos criam) e homossexuais de gays e lésbicas, então de GLS, depois LGBT, depois LGBT+, e então LGBTQIA+, LGBTQIAP+ e atualmente LGBTQIAPN+. (Eu me pergunto: se a cada hora acrescentam mais uma letra a essa sigla, para que serve o sinal de mais? E se siglas são feitas para simplificar, por que complicar essa sigla?)
No entanto, na contramão de todos esses eufemismos, supostamente criados para não ofender as minorias que eles representam, os afrodescendentes passaram a rejeitar os termos moreno e de cor por achá-los discriminatórios e, sobretudo, porque alegam sentir orgulho de sua raça — ou melhor, etnia, já que não existem raças — e, assim, querem agora ser chamados de negros ou mesmo de pretos.
No tempo em que, por empatia e não por desprezo, chamávamos os pretos e os pardos escuros de morenos, escurinhos ou pessoas de cor, os termos preto e negro referindo-se à cor da pele eram altamente ofensivos, um tabu semelhante às palavras câncer e morrer, trocadas respectivamente por aquela doença ruim e fazer a passagem. Agora, ser chamado de preto ou negro é motivo de orgulho e revela o empoderamento das pessoas dessa raça — ou melhor, desse genótipo —; agora, moreno, escurinho e de cor é que são ofensivos! Aliás, o paroxismo do politicamente correto é as pessoas “de cor” terem lutado para ser chamadas de negras e, de repente, a própria palavra negro se tornar politicamente incorreta, sendo preferido em seu lugar o vocábulo preto. (Veja a esse respeito o comentário nada a ver do ator Babu Santana constante no meu vídeo O que é ser preto, negro, pardo ou afrodescendente no Brasil?:
https://www.youtube.com/watch?v=SRXrWWjvzSA&t=12s
Outro exemplo de incoerência dos ideólogos dessas pautas identitárias é a denominação presidenta aplicada a Dilma Rousseff com o objetivo de demonstrar o empoderamento feminino ao termos pela primeira vez uma mulher no cargo de primeiro mandatário da nação ao mesmo tempo em que se rejeita a designação poetisa para a mulher que faz poesia, que já há algum tempo é chamada também de poeta. Aliás, nos Estados Unidos (sempre lá), há um movimento crescente de substituição da palavra actress, “atriz”, por actor, “ator”, que agora passou a ser substantivo comum de dois gêneros. O mesmo politicamente correto que exige ressaltar a condição feminina em certos casos tenta neutralizá-la em outros? Será que existe algum critério lógico por trás dessas escolhas? Ou será apenas burrice? Parece que, no afã de criar novas denominações para fatos sociais que já têm denominações próprias (e que, diga-se de passagem, raramente são usadas de maneira pejorativa), bem como de eleger inimigos contra os quais dirigir sua revolta, os militantes do identitarismo metem os pés pelas mãos, instituem regras contraditórias e ilógicas, lançam fake news etimológicas para embasar seus ataques e criticam a onda de desinformação semeada pela extrema-direita como se eles próprios não fizessem o mesmo.
É a chamada guerra de narrativas. E o pior é que quem está alheio a essa guerra — no caso, a maioria dos falantes — acaba sem saber que palavra ou expressão é melhor usar. Do jeito que a coisa vai, sorte tem quem é mudo.
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Aldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.
Acaba de lançar, pela Editora GrupoAlmedina,
“Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”
Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br
e-mail: aldo@aldobizzocchi.com.br