Poética e corajosa canção. Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira
Ouvia-se uma canção composta por autores já conhecidos e consagrados e nela prestava-se atenção. A atenção devia ser redobrada, pois as letras continham mensagens políticas nem sempre explícitas. Para vencer a censura …
PUBLICADO EM "MARIZALHAS", MIGALHAS, EDIÇÃO DE 3 DE JULHO DE 2024
Como disse em artigo anterior, a arte, especificamente a música, foi utilizada como meio de protesto e de combate ao regime militar ditatorial. As composições tiveram o condão de manter acesa a chama da resistência que foi se espalhando paulatinamente para despertar consciências e acordar espíritos desavisados ou alienados. Ouvia-se uma canção composta por autores já conhecidos e consagrados e nela prestava-se atenção.
A atenção devia ser redobrada, pois as letras continham mensagens políticas nem sempre explícitas. Para vencer a censura tinham os compositores que recorrer a estratagemas linguísticos nem sempre fáceis de percepção. Eles contavam com a modesta inteligência de alguns censores, que muitas e muitas vezes passavam batidos, não percebiam o que continha nos versos musicais.
No entanto, várias canções foram censuradas e seus autores converteram-se em mágicos da palavra para poder manter mesmo conteúdo voltado para as denúncias e para o protesto que eram camuflados por construções semânticas de elevada inteligência e criatividade.
Em crônica anterior citei uma emblemática composição de Chico Buarque e Gilberto Gil, “Cálice”, talvez a mais inteligente e sutil música de protesto contra a ditadura militar composta no país.
Agora, vou abordar uma outra canção também daqueles tempos, igualmente engajada no rico rol daquelas denotadoras do inconformismo que dominava a sociedade brasileira.
Esta melodia, ao contrário de “Cálice”, na verdade “Cale-se”, apresentava mensagens mais explícitas extraídas de uma realidade visível e inegável, contra a qual se fazia um apelo ao enfrentamento. Enquanto a composição de Chico e de Gil revelava uma angústia existencial provocada pelo cerceamento das liberdades, especialmente a de expressão, a música de Geraldo Vandré, “Caminhando” ou “Para não Dizer que não Falei das Flores”, representava uma conclamação para a resistência coletiva que partiria das escolas, das ruas, dos campos.
A estrofe do chamamento “vem, vamos embora que esperar não é saber quem sabe faz a hora não espera acontecer” tornou-se um poético e belo grito de guerra, contra o imobilismo e a apatia.
A união é pregada logo no início para que todos caminhem cantando “seguindo a canção”, dando-se os braços ou não, pois todos são iguais, e o importante é seguir em frente, rumo à “certeza na frente” tendo “amores na mente” e a “história na mão”.
Uma explícita mensagem de amor mostra que a luta pode não ser cruenta, pois apesar da fome nos campos e nas plantações os “indecisos cordões ainda fazem da flor seu mais forte refrão e acreditam nas flores vencendo canhão”.
Uma contundente crítica à formação militar é feita quando dizem os versos que há soldados armados “amados ou não” perdidos e de “armas na mão”. Ensinaram-lhes que deveriam morrer pela pátria e “viver sem razão”.
Observa-se que a canção “Caminhando” traz no seu bojo uma multiplicidade de mensagens, apelos, conclamações, versos de esperança marcados por expressões de união e de igualdade “somos todos iguais braços dados ou não”. Palavras ligadas à beleza como “canção”, “flores” “caminhando e cantando” são utilizadas para conclamar o povo a resistir contra a névoa ditatorial que encobriu e obscureceu os nossos horizontes. A canção se tornou um hino de aclamação que emocionou e estimulou a sociedade, especialmente por meio do refrão “vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer”.
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões.