Eutanásia e aborto. Por Adilson Roberto Gonçalves
…A prática de eutanásia, o direito de morrer, está aumentando no mundo, mas no Brasil é mais um dos tabus que dizem respeito à saúde pública. E a coloco junto com outro tópico polêmico, o aborto, porque há muita hipocrisia e falácias quando tais temas são abordados…
“Ninguém quer a morte, só saúde e sorte”. Assim diz a música do Gonzaguinha. Mas temos de encarar a morte, uma das duas certezas da vida (a outra são os impostos). A prática de eutanásia, o direito de morrer, está aumentando no mundo, mas no Brasil é mais um dos tabus que dizem respeito à saúde pública.
E a coloco junto com outro tópico polêmico, o aborto, porque há muita hipocrisia e falácias quando tais temas são abordados. Um dos argumentos contrários ao aborto diz que a vida deve ser defendida desde a concepção até a morte natural. Ou seja, se levarmos ao pé da letra o pressuposto, ninguém deveria ser mantido por aparelhos quando resultado de alguma enfermidade grave, nem ser submetido ao procedimento de ressuscitação quando há alguma parada cardíaca. Não, procuramos sempre os melhores recursos médicos para prolongar a vida, mesmo em casos de estado vegetativo do paciente, em que a consciência já não mais funcione. Aí que entra o direito à eutanásia. Não quero ficar preso a uma cama sabendo que meu cérebro não mais existe. Mas a lei não permite esse direito e quem o praticar (não serei eu a desligar os fios) incorrerá em crime contra vulnerável. Não adianta deixar uma autorização por escrito. Pelo menos por enquanto.
Uma boa análise dessa questão foi feita no artigo “Autonomia do paciente e a palavra final sobre o fim” por médicos e advogados na Folha de S. Paulo (7/6) em que defendem regulamentar a eutanásia. Porém, com o Parlamento retrógrado que possuímos, o direito à eutanásia não prosperará. A crença de uns não pode determinar a decisão de outros, mas é o que está acontecendo.
É o mesmo princípio do direito ao aborto, em que a questão é diferenciada, pois se trata de decisão exclusiva da mulher – ou assim deveria ser – e envolve um feto. No meu ver, existem duas correntes. Há os que defendem o “direito ao aborto”, ou seja, que se possa praticar a interrupção da gravidez sem qualquer impedimento legal, bastando a decisão da mulher em fazê-lo. Outra corrente, distinta, é a “descriminalização do aborto”, ou seja, quando praticado, não pode tornar criminosa a mulher que o praticou nem os profissionais da saúde (médicos, enfermeiros, assistentes, etc) que realizaram o procedimento. Se hoje a descriminalização já é muito limitada aos casos de estupro, risco de saúde para a mulher ou de feto anencefálico, estão querendo tornar a situação mais difícil, pautada por ideologia e religiosidade, alheios à saúde pública que deveria ser a única questão a ser discutida.
O recuo de Arthur Lira congelando o Projeto de Lei 1904/2024 – a dos benefícios ao estuprador e condenação da vítima – foi apenas estratégico para acomodar a indignação despertada na população. A bancada evangélica voltará com a carga toda após as eleições municipais para aprovar sua criminosa pauta de costumes. Não contentes com a apropriação das mentes de seus fiéis, querem legislar sobre o corpo da mulher, promovendo a estatização do útero.
Entre fatos e fetos, a população clamou pelo direito da mulher a seu próprio corpo.
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– Adilson Roberto Gonçalves – pesquisador da Universidade Estadual Paulista, Unesp, membro de várias instituições culturais do interior paulista. Vive em Campinas.