Justiçamento de palavras. Por Aldo Bizzocchi
Justiçamento…Palavras e expressões como denegrir, criado-mudo, travestido, mulato, hombridade, meia tigela, nas coxas não têm tido direito à ampla defesa e ao contraditório; seus advogados, no caso, os etimólogos e os lexicólogos, têm sustentado em vão que algumas dessas palavras e expressões jamais tiveram origem em preconceitos de raça, gênero ou orientação sexual…
Logo após o golpe de Estado de 1964, que implantou no Brasil o regime militar — na verdade uma ditadura de militares com massiva colaboração de políticos e empresários de direita e extrema-direita —, muitos grupos de esquerda e sobretudo de extrema esquerda, que já vinham planejando impor ao país uma outra ditadura, a “do proletariado”, aproveitaram a ocasião para lançar-se à luta armada contra o novo regime sob a alegação de que estavam defendendo a democracia. Na guerra suja em que se transformou o combate entre as forças do governo militar e seus opositores, classificados como subversivos e guerrilheiros, valia de tudo. Do lado governista, houve a implantação do Ato Institucional n.º 5, o famoso AI-5, que dava às autoridades militares e policiais o poder de censurar órgãos de imprensa e manifestações artísticas, bem como de prender, torturar e matar qualquer cidadão sob a suspeita de colaborar ou simplesmente simpatizar com grupos ou movimentos revolucionários, sem direito ao devido processo legal — na verdade, sem direito até a um sepultamento digno, visto que os corpos dos executados desapareciam sem deixar vestígios.
Do lado dos guerrilheiros esquerdistas, havia assaltos a bancos para financiar os “aparelhos”, nome dado aos grupos subversivos, havia sequestros de figuras públicas, inclusive estrangeiras (o sequestro do embaixador americano ficou particularmente famoso), ataques a bomba a prédios públicos e atentados à vida de pessoas supostamente ligadas ao governo militar ou simpáticas a ele. E havia também os chamados “justiçamentos”, execuções sumárias de membros das próprias falanges de esquerda acusados de traição à causa revolucionária mediante a mera suspeita de que fossem agentes duplos, igualmente sem direito à defesa, sem provas concretas e sem nenhum drama de consciência.
É claro que as condições em que operavam tanto os militares quanto seus opositores eram de guerra (uma guerra secreta, não noticiada pela imprensa, amordaçada pela censura), portanto não havia como promover um julgamento justo dos suspeitos de colaborar seja com o regime seja com a guerrilha. Logo, a execução sumária era uma medida extrema, porém justificada: era preferível matar um inocente a permitir que o inimigo continuasse conspirando.
Portanto, justiçamento é a justiça feita com as próprias mãos, à margem do sistema institucional e, por óbvio, sem cumprir os requisitos do devido processo legal, consubstanciados em três princípios básicos:
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- todo acusado tem direito à ampla defesa e ao contraditório;
- todo réu é inocente até que se prove a sua culpa (é a chamada presunção de inocência); e
- o ônus da prova cabe à acusação e não à defesa.
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Por que estou aludindo a esses fatos? É que, de algum tempo para cá, os movimentos identitários, de negros, gays, trans, mulheres e outras “minorias”, herdeiros e sucedâneos dos esquerdistas que, nas décadas de 1960 e 70 sonharam transformar o Brasil numa república popular, eufemismo para ditadura comunista, passaram a praticar o justiçamento de palavras, acusando-as de racismo, machismo, homofobia, etc., julgando-as, condenando-as e executando-as na forma de censura e banimento do léxico da língua portuguesa com base única e exclusivamente em sua própria percepção subjetiva, isto é, na mera suspeita de que tais vocábulos sejam de fato criminosos.
Palavras e expressões como denegrir, criado-mudo, travestido, mulato, hombridade, meia tigela, nas coxas não têm tido direito à ampla defesa e ao contraditório; seus advogados, no caso, os etimólogos e os lexicólogos, têm sustentado em vão que algumas dessas palavras e expressões jamais tiveram origem em preconceitos de raça, gênero ou orientação sexual, assim como outras, que até podem ter tido tal origem, não carregam mais o significado ou a conotação discriminatória original há séculos e que, portanto, ninguém mais as emprega em sentido pejorativo ou ofensivo. Os especialistas na história e na semântica das palavras simplesmente não são ouvidos; por vezes, são até alvo de acusações vazias e desprovidas de fundamento, como a de que estariam a serviço da burguesia opressora e da “zelite dominante”.
Em segundo lugar, não tem sido concedido a tais vocábulos e locuções o direito à presunção de inocência, o benefício da dúvida, o in dubio, pro reo do Direito romano. Uma vez acusadas pelo tribunal identitário, são imediatamente declaradas culpadas, mesmo sem provas conclusivas. E é preciso dizer que, na pesquisa etimológica, em que os vestígios da história de uma palavra não raro são apagados pelo tempo, em muitos casos não há como provar nem que um certo termo tenha origem discriminatória nem que não tenha. E é aí que entra o benefício da dúvida, a presunção de inocência. Parece que em julgamentos justiceiros e não justos, é preferível condenar o inocente a absolver um possível culpado: in dubio, contra reo.
Por fim, a acusação, a quem deveria caber o ônus da prova, neste caso nada precisa provar: se eu sou negro, ou homossexual, ou transexual, ou não binário, ou mulher, ou nordestino, ou deficiente, ou…, e me sinto incomodado com tal ou qual expressão, minha palavra basta. Na corte de justiça(mento) identitária, a opinião vale mais do que o fato, a emoção conta mais do que a razão, o entendimento do leigo pertencente a uma minoria (ou demagogicamente apoiador dela) tem mais peso que o parecer do especialista, e a turba ignara que vibra diante de linchamentos, sejam eles físicos ou morais, entusiasticamente noticiados pela mídia policial ou celebrados pelas patrulhas culturais e ideológicas, sente-se recompensada, pois esses movimentos policialescos da linguagem estão seguramente contribuindo para construir uma sociedade mais justa. Ou talvez mais justiceira.
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Aldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.
Acaba de lançar, pela Editora GrupoAlmedina,
“Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”
Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br
e-mail: aldo@aldobizzocchi.com.br