heróis

Meus heróis não morreram de overdose. Por Paulo Renato Coelho Netto

… A música Ideologia foi composta por Cazuza em 1988. Nada mudou, desde então. Ouça com ouvidos de 2024 para constatar. Na canção está o verso “Meus heróis morreram de overdose”.

heróis

Nada contra os heróis do Cazuza que morreram de overdose. O cantor e compositor morreu de Aids, um dos primeiros brasileiros famosos a sucumbir pela doença, em 1990, com apenas 32 anos.

O primeiro super-herói de uma criança é quase sempre o pai. Tinha apenas 11 anos quando o meu se foi, vítima de AVC, seguido de um poderoso infarto fulminante. Ele tinha 53 anos. Muito novo.

Em casa que tem criança, quando o pai morre uma infância é sepultada no mesmo dia.

Hoje sou mais velho que ele.

Por conta do meu pai, Castro Alves foi meu primeiro herói além das paredes internas de casa. Não imaginava que um ser humano tivesse capacidade para escrever algo tão visceral e arrebatador quanto “Navio Negreiro”.

O  poeta morreu de tuberculose aos 24 anos, doença que matava escritores, boêmios, seresteiros e alcoólatras em geral, entre outros, lá pelos idos de 1800 e bolinha.

Augusto dos Anjos, outro herói pós porta de casa, também apresentado a mim pelo meu pai, morreu de pneumonia. Escreveu o livro “Eu”, o suficiente para eternizá-lo na categoria dos gênios brasileiros.

Machado de Assis, negro genial que na escola nos ensinaram que era branco, o maior escritor brasileiro, sofreu de epilepsia e morreu de câncer.

Há uma crônica dele, que não me lembro o nome, que dizia que uma dia ainda iam construir uma ponte para ligar o Rio de Janeiro a Niterói. O escritor morreu em 1908. A ponte foi inaugurada em 1974.

Otto Lara Resende, meu mineiro favorito, morreu de parada cardiorrespiratória. Comprava jornais para ler suas crônicas. Tinha o dom de tornar meus dias melhores. Quando faleceu, em 1992, foi a primeira vez que senti que havia perdido um grande amigo, sem nunca tê-lo visto pessoalmente.

Um dos melhores cronistas brasileiros, é dele a frase “O mineiro só é solidário no câncer”. Otto Lara Resende era tão bom que influenciou até o dramaturgo Nelson Rodrigues, que saiu dessa para melhor também de complicações cardiorrespiratórias.

Oscar Niemeyer, nosso arquiteto reconhecido mundialmente, morreu de insuficiência respiratória. É dele a frase “A vida é um sopro, um minuto”. Dizia também, o gênio que fez a plana arquitetônica de Brasília, que “envelhecer é uma merda”.

Niemeyer, revolucionário e comunista desde criancinha, viveu 104 anos.

O jornalista e advogado Barbosa Lima Sobrinho morreu de falência múltipla dos órgãos aos 103 anos. Menos denso que Niemeyer, dizia que “Ninguém consegue ser subversivo após uma feijoada”.

Um câncer de próstata levou Luiz Gonzaga e, logo depois, um acidente de carro no Paraná matou Gonzaguinha, seu filho.

Um infarto, quem poderia imaginar, tirou do palco o genial cantor e compositor Tim Maia, que tinha fama de faltar aos próprios shows. Morreu, literalmente, trabalhando.

Um ataque cardíaco retirou desse mundo o jornalista Paulo Francis, em Nova Iorque. Era outro que me fazia sair de casa para comprar jornal para ler sua coluna aos domingos na Folha de S. Paulo.

Tom Jobim morreu também em Nova Iorque de parada cardíaca.

Morte boa, se é que existe, teve o poeta Vinícius de Moraes, parceiro de Tom Jobim.

Tom e Vinícius, isso sim, é o que podemos chamar de dupla de respeito.

… Adoniran Barbosa, João do Vale, Noel Rosa, Manuel Bandeira, Volpi, Rolando Boldrin, Manoel de Barros, Moraes Moreira, Aldir Blanc, Portinari, Pixinguinha, Mazzaropi, Pena Branca, Xavantinho, o publicitário Pedro Mattar, os jornalistas Carlinhos Brickmann e Washington Novaes, Cora Coralina e Drummond também são meus heróis que não morreram de overdose, entre tantos outros que admirei…

O poetinha cantou e conversou até as quatro da manhã com o parceiro Toquinho. Se despediram neste horário. Às sete da manhã Vinícius foi encontrado por Toquinho sem vida na banheira, segundo relatos do amigo violonista. Vinícius morreu de edema pulmonar em sua própria casa, na Gávea, no Rio de Janeiro. Tinha 66 anos bem vividos.

Vinícius era um sobrevivente. Saiu vivo de nove casamentos e de um acidente aéreo, a bordo de um hidroavião, em 1945, que fez um pouso forçado no Uruguai. Dois passageiros morreram.

Adoniran Barbosa, João do Vale, Noel Rosa, Manuel Bandeira, Volpi, Rolando Boldrin, Manoel de Barros, Moraes Moreira, Aldir Blanc, Portinari, Pixinguinha, Mazzaropi, Pena Branca, Xavantinho, o publicitário Pedro Mattar, os jornalistas Carlinhos Brickmann e Washington Novaes, Cora Coralina e Drummond também são meus heróis que não morreram de overdose, entre tantos outros que admirei.

Neste país injusto, tudo muda só se for para permanecer igual.

A música Ideologia foi composta por Cazuza em 1988. Nada mudou, desde então. Ouça com ouvidos de 2024 para constatar. Na canção está o verso “Meus heróis morreram de overdose”.

Penso que não importa como a gente morre, “de susto, de bala ou vício”, como na música de Caetano Veloso, octogenário cheio de saúde e energia. Que Caetano viva tanto ou mais que sua mãe, dona Canô, 105 anos.

O que importa é o que fazemos durante a vida.

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paulo rena

Paulo Renato Coelho Netto –  é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”. Vive em Campo Grande.

 

capa - livro Paulo Renato

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