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Campo Grande e Cuiabá*. Por Paulo Renato Coelho Netto
… Campo Grande deveria entrar para o livro dos recordes. Tem mais de trinta e cinco mil universitários e não existe vida acadêmica na cidade. O universitário padrão aqui é aquele que estuda em faculdade paga e vai de carro para as aulas…
Uma rede de farmácia inaugurou recentemente a quinquagésima loja em Campo Grande. Excelente para o dono das drogarias e um péssimo indicativo para a qualidade de vida do campo-grandense. Se por aqui existe uma farmácia em cada esquina, em Cuiabá tem um botequim. Quem conhece lá sabe disso. Ótimo para a qualidade de vida do cuiabano.
O campo-grandense passa a maior parte do tempo pensando em poder ou dinheiro. Quase todo campo-grandense, ou quem vem morar aqui, quer exercer algum tipo de poder. Quase todo habitante da Cidade Morena dedica também a maior parte da vida pensando só em dinheiro.
O cuiabano está mais a fim de se divertir. Aqui um bar abre e fecha depois de uns meses. Lá a vida noturna é um dos principais atrativos turísticos e culturais da cidade. E dá-lhe viola de cocho.
O campo-grandense é absolutamente desconfiado. É a herança cultural deixada pelos mineiros que fundaram a cidade. Existem várias modalidades de campo-grandenses nessa área. Há os crônicos que não dão sequer bom dia quando fingem que não te veem na rua, no trânsito e no shopping.
Principalmente no shopping. Tem aquele que é pior ainda, que mora no mesmo prédio que você e não se dá ao trabalho, nem por educação, de te dar bom dia dentro do elevador. Fica aquela coisa constrangedora em um espaço com pouco mais de um metro quadrado.
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Já o cuiabano é a personificação da alegria. Ele não precisa de muitos motivos para fazer uma peixada e levar você para dentro da casa dele. Já te recebe pela cozinha. Dali a pouco aparece um para tocar violão e outro para fazer a vaquinha para comprar cerveja e tudo bem. Está feita a festa.
O campo-grandense, por sua vez, se esconde anos dentro dele mesmo. Precisa ser cortejado até o primeiro chope. Depois as coisas acontecem naturalmente. Uma vez seu amigo, está selada uma relação sem data para acabar.
Campo Grande deveria entrar para o livro dos recordes. Tem mais de trinta e cinco mil universitários e não existe vida acadêmica na cidade. O universitário padrão aqui é aquele que estuda em faculdade paga e vai de carro para as aulas. Termina aí a agitada vida acadêmica campo-grandense.
Conheço um delegado que fez plantão anos na delegacia central de Campo Grande. Ele disse que durante todo o tempo que trabalhou por lá nunca recebeu uma reclamação de barulho ou festa em repúblicas.
O cantor, compositor e agora ministro Gilberto Gil¹ desenvolveu uma teoria que o campo-grandense é assim, digamos travado, porque aqui não tem água. Falta um rio, pelo menos, para o sujeito dar um descarrego. E olha que baiano entende tudo sobre descarrego.
Assim como o carioca clássico é aquele que nunca foi ao Cristo Redentor, o campo-grandense padrão é aquele que não conhece Bonito, o Pantanal, não viaja, não vai ao cinema, não gosta de ler livros, detesta pagode e carnaval.
Tudo bem que, pelos preços, é preciso um caminhão de dinheiro para se conhecer Bonito, mas, no saldo final, ainda é melhor um pouco de diversão nas águas de lá a uma cirurgia cardíaca na Santa Casa daqui.
O cuiabano não pensa duas vezes quando o assunto é água. Tanto no Rio Cuiabá quanto na Chapada dos Guimarães, a ordem é se esbaldar. A praia elimina a diferença social entre as pessoas. Todos são iguais sob o sol, de shorts ou biquíni.
A briga para dividir o velho Mato Grosso teve início em Nioaque. Foi em 1894 que uma luta por posse de terra e poder entre coronéis deu origem ao movimento separatista para se criar um Estado no sul, independente de Cuiabá.
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Novamente poder e dinheiro. Só que até hoje, os coronéis de lá prosperaram mais que os coronéis daqui. Já perdemos até fábricas de cerveja para Cuiabá porque os coronéis daqui só vislumbravam a bovinocultura. É um ranço sem fim.
Enquanto o sul-mato-grossense comemora com feriado estadual a divisão, no dia 11 de outubro, os mato-grossenses têm um dia normal de trabalho. Eles sabem que vai chegar a sexta-feira e que toda sexta-feira chega com aquele ar de feriado semanal.
Não existe nada em comum entre um campo-grandense e um cuiabano. São imiscíveis, feito água e óleo, na maneira de viver. Até os sotaques são diferentes. Farmácia para cuiabano é um serviço necessário e não essencial.
Ele sabe que a felicidade é o maior remédio contra todas as doenças. Montar uma farmácia em Cuiabá dá no mesmo que abrir uma loja para vender gelo no Alasca.
A propósito: o autor deste artigo nasceu em Campo Grande e acredita que o excesso de introspecção do campo-grandense tem cura. Só que o remédio não está na farmácia.
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* Nota do autor¹: Artigo publicado em 2006 em jornais, revistas e sites de Campo Grande e Cuiabá. Desde então, quase duas décadas depois, as farmácias se multiplicaram ainda mais em Campo Grande. O texto, que viralizou na época por e-mail, nos primórdios da internet, foi publicado principalmente nos veículos de comunicação cuiabanos. Foi lido na Tribuna do Senado pelo senador mato-grossense Wellington Fagundes, no dia 5 de abril de 2019, na sessão solene em comemoração aos 300 anos de Cuiabá. Desde 2006, a frase “uma farmácia em cada esquina” tornou-se recorrente em Campo Grande.
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Paulo Renato Coelho Netto – é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”. Vive em Campo Grande.