alimento

Este alimento fundamental. Por Antonio Contente

Alimento…No contato com preciosos materiais de leitura as pessoas, naturalmente, se recriam. Viajam na racionalização do paradoxo da permanência. No meu amazônico estado de solidão, em certos momentos só apalpar os encadernados ou os de capa mole é belo exercício para o alcance do bem estar…

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O título desta crônica se refere a livros. E dentro deste fascinante universo, não conheço (ainda) nenhum expert em compulsar os chamados “livros eletrônicos”; que, francamente, nem faço ideia como funcionam, apenas imagino. Neste exercício que pode ser um viajar por muitos caminhos, acho que a literária geringonça de ponta são aparelhos do tamanho, digamos, de uma brochura tradicional. Capazes de conter, num simples chip, toda a obra, por exemplo, de Honoré de Balzac, algo em torno de 100 volumes. Garantem que, em futuro não muito distante, quem quiser curtir um romance impresso terá que recorrer a bibliotecas que seriam algo como museus. Pois em livrarias estariam à disposição dos interessados apenas, além dos aparelhos exibidores dos textos, movidos provavelmente a baterias de longa duração, os tais chipinhos alimentados com o que a sensibilidade dos escritores colocou no papel… Desculpem, no papel não, nos computadores…

Falo disso não porque guarde algum medo de ser atingido pela mudança do modo de ler, não tenho mais idade para ser alcançado por tal avanço tecnológico. Que quando chegar plenamente me encontrará, com certeza, muito além da Trapobana. Mas, dizia, resvalo sobre o tema porque, no casebre em que me abrigo de vez em quando no delta do rio Amazonas, montei pequena biblioteca. Que vai aumentando devagar, com obras que aos poucos vou levando. O tema é amplo e explico: sozinho num lugar tão ermo como aquele, os livros me são formidável companhia. Que o chip do tal aparelho para leitura não permitiria usufruir visualmente. Apenas mirar os volumes colocados nas pequenas prateleiras chega a ser, para meus olhos relativamente cansados, conforto e alento.

No contato com preciosos materiais de leitura as pessoas, naturalmente, se recriam. Viajam na racionalização do paradoxo da permanência. No meu amazônico estado de solidão, em certos momentos só apalpar os encadernados ou os de capa mole é belo exercício para o alcance do bem estar. Ainda mais porque sou senhor de sólida tecnologia d’antanho que me permite ouvir Sonatas de Mozart através de aparelho de som movido a bateria de carros, pois lá não há eletricidade. Instalado, exatamente, na bibliotequinha. Pode haver fundo melhor que o musical para se acariciar páginas, e páginas, e páginas?

 Acho, agora, ter descoberto a razão maior de redigir este texto: entre os livros mais importantes do exíguo acervo há um nunca lido na plenitude, apenas folheio de vez em quando. Esta revelação, provavelmente, levará frustração à pessoa que me deu “A Crítica da Razão Pura”, o ex-prefeito de Campinas Lauro Péricles Gonçalves, leitor compulsivo de clássicos de todas as ordens. Num dos meus inúmeros aniversários, faz alguns anos, presenteou-me com aquela que é considerada a obra mais consumida e importante de Immanuel Kant (1724-1804). Como a filosofia não é exatamente a praia em que me banho, guardei a prenda como algo a ser conservado com carinho pelas circunstâncias da chegada às minhas mãos: doada por um bom amigo. E que, generosamente, sobrevalorizou meus conhecimentos culturais; na realidade exíguos, raquíticos, esqueléticos, quase diria exangues. Mantive o livro por muito tempo aqui na casa campineira; depois levei para a ilha.

O efeito disso, afinal, resultou extremamente benéfico. Não só porque a lombada sobressai entre as outras, mas, sobretudo, porque me levou a ir descobrindo certas formulações kantianas não exclusivamente no volume que ganhei. Algumas que até se encaixam de forma perfeita na vida brasileira. Santo Deus, como gostaria de meter nas cabeças de alguns desses políticos que há séculos burilam nossas amarguras, a reflexão do filósofo convidando-os a agir de modo a considerar a humanidade dentro de suas próprias pessoas quanto de qualquer outra; sempre como objetivo, nunca como simples meio…

Algo me diz que o presente recebido ficará para sempre  como uma espécie de Bíblia que se abre ao acaso para sorver  ensinamentos. Mas, afinal, através dele vejo confirmado ponto crucial de algo que atormenta de forma acachapante o nosso País. Tão doloridamente revelado pelos índices ruins que ostentamos, na comparação com outras nações ditas emergentes, dentro do plano da educação. Que é o que Kant já apontava, faz tanto tempo, como o principal segredo do aperfeiçoamento da humanidade. Para finalizar, em sacada certeira do filósofo prussiano, observamos que conhecia profundamente as sutilezas do sexo oposto. Pois deixou escrito que a sabedoria das mulheres não é raciocinar. É sentir. Bom dia.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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