a mão do destino

A mão do destino. Por Myrthes Suplicy Vieira

Mão do destino… Resolvi então fazer um trato com meu velho amigo, São Francisco. Prometi não procurar novos companheiros em sites de adoção ou pet shops, nem ir atrás de indicações de possíveis candidatos. Em troca, pedi que, se ele colocasse espontaneamente no meu caminho algum ser de quatro patas carente e abandonado...

a mão do destino

Nos dois meses em que fiquei de cama sem poder andar e movimentar o braço esquerdo, passei intermináveis horas de angústia pensando em como seria possível voltar a administrar o cotidiano de minhas cachorras de uma maneira minimamente tranquila e segura.

Sabia que não poderia levá-las para passear sem contratar a ajuda de alguém e muito provavelmente só uma vez por dia. No restante do tempo, elas teriam de ficar enfurnadas no apartamento, sem nenhuma atividade estimulante com que se envolver. Estava também tranquila por saber que elas estavam morando numa casa com um grande gramado, no interior de São Paulo, na companhia de mais quatro outros cachorros, podendo sair à hora que quisessem, correr e brincar. Pelo que me contavam, a adaptação delas ao novo lar havia sido bastante rápida e tranquila graças a isso. Não sei o quanto a nossa abrupta separação significou sofrimento para elas no início, mas já intuía que jamais poderia competir na oferta de um cotidiano tão feliz e livre quanto esse.

Dividida entre a culpa pelo abandono e a tristeza de perder a companhia delas para sempre, eu ainda tentava negociar com minha consciência. Pensava em dezenas de arranjos intermediários, mas chegava sempre à conclusão de que nenhum deles seria efetivo a longo prazo. Tomei então a decisão mais difícil da minha vida: entre o sofrimento delas e o meu, entendi que a única solução viável era transferir a guarda das duas em definitivo. Apesar de já ter enfrentado a dolorosa perda de três cachorras por adoecimento e morte, eu nunca havia considerado a terrível possibilidade de me desvencilhar de nenhuma em vida.

Não é nem preciso dizer que, a partir desse dia, minha vida perdeu todo o seu propósito. Nas delirantes madrugadas insones, eu repetia para mim mesma que a única forma de encontrar algum conforto emocional seria cuidando de um outro ser vivo. Sem ter com o que me ocupar, a solidão e a depressão se instalaram de mala e cuia no meu cotidiano. Passava os dias sem sair de casa, sem interesse por absolutamente nada, nem leituras, nem música, em profundo silêncio.

Testemunhando minha tristeza, muitas pessoas amigas me aconselharam a adotar um cachorro de pequeno porte, que eu pudesse carregar no colo. Essa possibilidade, no entanto, me parecia eticamente indefensável. Era como se eu não estivesse me importando com o destino de minhas cachorras e as trocando por outra mais conveniente só para satisfazer meu ego.

Quando a tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul começou, minha angústia extrapolou de vez. As imagens medonhas de animais resgatados de telhados ou ganindo de desespero nos abrigos por saudade de seus tutores me estimulavam ainda mais a me voluntariar para adoção.

Resolvi então fazer um trato com meu velho amigo, São Francisco. Prometi não procurar novos companheiros em sites de adoção ou pet shops, nem ir atrás de indicações de possíveis candidatos. Em troca, pedi que, se ele colocasse espontaneamente no meu caminho algum ser de quatro patas carente e abandonado, eu aceitaria assumir a responsabilidade de cuidar dele, mesmo que fosse apenas temporariamente.

Pouco tempo se passou desde então. No início da semana passada, recebi a ligação de uma sobrinha, perguntando se eu aceitaria acolher por alguns dias uma cachorra que havia sido resgatada das ruas, quase atropelada, até que seu tutor fosse localizado. Concordei um tanto hesitante ao ver a foto dela e constatar que ela era de porte médio, quase grande, o que equivaleria a trocar 6 por meia dúzia.

Ela me foi trazida no mesmo dia. Absolutamente traumatizada, a cachorra andava lentamente, de cabeça baixa e com o rabo enfiado no meio das patas traseiras. Não ousava me olhar, não produzia nenhum som e se recusou a comer ou tomar água, como se implorasse para não ser percebida. Dormiu nas 24 horas seguintes. Quando acordou, decidi levá-la ao veterinário para saber se ela estava doente. Nenhum problema de saúde foi identificado.

Como ninguém apareceu para assumir sua guarda, decidimos encaminhá-la para uma feirinha de adoção. E, para que isso fosse possível, era obrigatório que ela passasse por exames de sangue e ultrassom. Quando os resultados saíram, a inesperada surpresa: ela estava prenhe e 5 filhotinhos estavam sendo gestados. Minha cabeça entrou em órbita. Embora me preocupasse muito com o inferno que minha vida se tornaria com 6 cachorros circulando pelo apartamento e exigindo minha atenção constante, eu sempre tinha sonhado que minhas cachorras me dessem filhotes e me esforçado muito para que isso acontecesse, sem sucesso.

Eu estava em uma sinuca de bico: não poderia simplesmente jogar a cachorra na rua novamente e também não me sentia em condições emocionais de assumir uma tarefa tão gigantesca como essa. Resolvi então “entregar para Deus” a decisão final. No mesmo dia, a cachorra milagrosamente começou a abanar o rabinho de contentamento ao me ver e passou a me seguir como sombra, chiclete e carrapato.

Não pude deixar de pensar na esperteza da “friendly persuasion” de São Francisco. Afinal, ele não só havia me seduzido com a promessa de alegrias futuras, mas também estava me entregando a cachorra perfeita, talhada especialmente para meu estilo de vida e minhas limitações: calma, extremamente dócil, capaz de conviver bem com outros cachorros, sem latir, sem puxar nos passeios, amiga das crianças e dos idosos.

O que mais eu poderia pedir do destino?

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(*) Myrthes Suplicy Vieira –  é psicóloga, escritora e tradutora.

1 thought on “A mão do destino. Por Myrthes Suplicy Vieira

  1. Nesta história, pus-me no lugar das tuas cachorras, as que foram parar num grande espaço, em companhia de novos amigos. Pode acreditar que sentem tua falta – o que não significa que não possam curtir novas amizades ou novos espaços a desbravar. Mas sentem muito tua ausência. Dê uma espiada em Citizen Canine: Our Evolving Relationship with Cats and Dogs (de David Grimm, editor da Science Magazine. Você poderá encontrar em papel e epub, e vale muito a pena ler).

    Imagino como tenha sido doloroso, para você, afastar-se delas. Às vezes, tendo de trabalhar durante a semana em Ottawa, e só voltando para casa entre quinta e sexta, a experiência de reencontrar meus cãezinhos – e ser por eles reencontrado – é difícil de pôr em palavras. Incrível o que sentem. Incrível o que me fazem sentir. Estudos (muitos) na área da neurociência já mostraram que, para nós, reencontrar nossos cães, quando se observa a tormenta hormonal que acomete nossos cérebros, equivale a reencontrar nossos filhos, particularmente filhos pequenos – e, para nossos cães, dá-se exatamente o mesmo, mas não porque veem seus pais biológicos em nós, mas precisamente porque se veem como humanos que nos têm como pais… Incrível. Você não acha?

    Sinto-me feliz por você ter uma nova família canina, sem querer se desfazer afetivamente da que não mais mora com você. Que tua nova família venha completa, com uma filha e alguns netos, lhe será uma experiência de muita alegria, pode acreditar. Palavra de quem tem em casa meia dúzia, e se prepara para receber o sétimo peludo em junho. São meus filhos, netos e bisnetos.

    Enjoy! E faça um bom plano de saúde veterinária para todos. Aqui custa os olhos da cara, e sei que aí não é muito diferente.

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