Era de tarde, chovia. Por Antonio Contente
Era de tarde, chovia… Súbito a chuva, que tinha passado, recomeça. A moça então ouviu uma vozinha tênue, longínqua…
Diante da autoridade da Delegacia da Mulher, os dois berravam ao mesmo tempo. A delegada, que até vinha demonstrando certa paciência, certo “fair play”, deu um violento murro na mesa no instante em que Flávio tentou pegar Ida pelo pescoço.
— Vamos parar!? – Gritou a autoridade – Assim não é possível! Vamos parar?!
Pararam, de fato pararam. A ordem da policial, então, veio calma:
— O senhor, por favor, permaneça calado. Agora, quem vai falar é só ela. Depois, será sua vez. Minha senhora, o que foi que aconteceu?
— Um equívoco, doutora, tudo não passou de um equívoco.
—Muito bem, e por causa desse equívoco seu marido, aqui presente, tentou matá-la, não é isso?
— Perfeitamente, doutora, meu marido não quis aceitar a realidade.
— Então, vamos lá. A senhora vai contar a realidade. Todos nós estamos aqui para ouvi-la.
— Muito bem, o que aconteceu foi o seguinte…
Contou então Ida, com voz pausada e calma, que vinha andando por uma rua deserta, ainda não asfaltada, perto do sua mansão no distrito campineiro de Sousas. O carro, quebrado, tinha ficado lá atrás. Súbito a chuva, que tinha passado, recomeça. A moça então ouviu uma vozinha tênue, longínqua:
— Senhora… Senhora…
Ela vira para um lado e outro e, não avistando ninguém, primeiro conteve o espanto. Em seguida, pergunta ao vazio:
— Quem está me chamando?
E a vozinha, sempre longínqua:
— Eu, senhora… Aqui…
Ela olha para o alto, nada. Faz o mesmo para os galhos e troncos de frondosa árvore num terreno baldio, sem resultado. Tomada de angústia, pois a chuva aumentara e a noite se aproximava, fala alto:
— Quem estiver me chamando que apareça, pelo amor de Deus!
— Aqui, senhora, aqui… Sou eu.
Finalmente – sempre segundo a narração de Ida – a moça percebe que algo se mexia junto a uma poça d’água, e era de lá que vinha a voz. Esfregando os olhos embaçados pelos pingos, avista um sapo todo coberto de lama.
— Sou eu, senhora, sou eu.
Obviamente, ela recua:
— Um sapo que fala? Horror, que horror!
— Engano seu, bela senhora, eu não sou um sapo.
— Não é um sapo?
— Não, na verdade sou um príncipe encantado pelo feitiço de uma mulher má, e preciso de alguém para me salvar.
— Mas salvar como?
— Me beijando, é claro. Bastará que a senhora me dê um beijo para que o encanto se desfaça.
— Mas como é que vou beijá-lo, sapo, se você está todo sujo de lama?
— Ora, bela senhora, me leve para sua mansão, me dê um belo banho e pronto, poderá me beijar.
Nesse ponto Ida interrompe a narração e olha fixamente para a delegada. Murmura:
— Foi só isso que aconteceu, doutora, levei o sapo para casa, lavei, dei o beijo e ele se transformou num belo rapaz.
A autoridade coça a cabeça. Ida segue:
— Foi nesse momento que meu marido, que eu julgava em Nova York, entrou no quarto. E ele não quer acreditar na minha história.
Paira, de repente, um silêncio sepulcral não só na sala, mas na delegacia inteira. Por fim, a policial se vira para o marido:
— Muito bem, e o senhor, o que tem a dizer?
Antes de falar, Flávio quis acender um cigarro mas uma investigadora logo disse que ali não podia. Ele atira o maço inteiro mais o isqueiro pela janela. Depois, com o indicador em riste, aponta para um homem sentado e até meio encolhido a um canto da sala:
— Minha estimada delegada – diz – o príncipe é aquele ali. Mas, veja bem, é príncipe agora.
— Como assim? – A policial finca os cotovelos na mesa.
— É que até antes de eu viajar, esse suposto batráquio que sequer sabe o que é um anuro anfíbio que na fase larvária tem a forma de girino, esse suposto batráquio, eu dizia, era um bípede “homo sapiens” que atendia pelo nome de Broges e é meu vizinho no condomínio.
Nisso, entre gargalhadas, os berreiros recomeçam. Como uma cobra, o ex-príncipe vai se esgueirando para a porta, por onde sumiu. Sob um temporal igualzinho ao do dilúvio que fez flutuar a arca de Noé.
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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