Educação digital e humanitária. Por Aylê-Salassié Quintão
Educação digital e humanitária:
passando uma borracha sobre as barbaridades
É quase impossível escrever sobre alguma coisa neste momento sem passar pelos 150 mortos e as 800 mil pessoas desabrigadas na tragédia do Rio Grande do Sul. Diante dos efeitos trágicos da calamidade, por comparação irresponsável, não se pode ignorar que, no norte do Maranhão, milhares de pessoas estão também sendo vitimadas por chuvas intensas, fazendo os rios transbordarem. As águas já invadiram 31 cidades maranhenses, obrigando centenas de famílias a deixar suas casas. O impacto não é maior porque, em sua maioria, são pequenas populações. Na terra gaúcha, contudo, o drama estendeu-se ao meio rural, com perdas enorme para a produção de alimentos, o que deve impactar o PIB brasileiro de 2024. Os números sugerem projeções assustadoras.
Conforta, entretanto, observar que esses infortúnios humanitários despertam espíritos solidários dentro da comunidade nacional, desanuviando ranços políticos. É momento propício para a solidariedade, e para se repensar as políticas preventivas, cujas deficiências tecnológicas, massa crítica e omissões oficiais não tem poupado os brasileiros de algumas fatalidades: tufões, queimadas, secas, fome, enchentes, desmoronamentos e algumas epidemias. As políticas de defesa civil nunca estão devidamente preparadas e equipadas para exercer com eficiência e rapidez respostas a esses fenômenos. São reativas a eventos já irrompidos e promovem apelos para ajudas improvisadas.
Políticos e governo aparecem de repente na contramão para socorrer, mas desconectados das realidades sociais. Contudo, é aí que emerge o ethos humanitário do brasileiro, descolado da política, da politicagem e da pilantragem. Atitudes dos cidadãos como as que estão sendo vistas na calamidade gaúcha (do Maranhão há poucas informações) faz lembrar Mahatma Gandhi com a sua pregação em favor da solidariedade humana e da resistência pacífica, estratégias revolucionárias, poupadoras de vidas humanas, que tornaram a Índia independente em 1947, depois de 200 anos de colonização inglesa.
A resistência pacífica como método de fazer revolução não vingou. Políticos paranoicos, egoístas e narcisistas fazem e refazem alianças coniventes com a indústria bélica, para tomar o Poder do Estado por meio de com revoluções armadas, sem se preocupar com os genocídios que provocam, a exemplo do que se vê na Ucrânia e na Palestina/Israel. A maioria dos conflitos humanos resultam de estereótipos (fakes) inculcados nas populações e cultivados por lideranças doentias ou carismáticas. Sempre resultam, sem constrangimentos, em tragédias humanitárias. São mais toleradas que os flagelos naturais.
Lamento entender que para o mundo que se anuncia estratégias como essas deixarão de ser solução diante das novas tecnologias, entre elas, a IA – Inteligência Artificial, que vai se espraiando vagarosa e consistentemente entre empresas, servidores públicos jovens em processo de preparação para assumir a chefia da Nação com uma consciência mais desintoxicada.
Relatórios da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, fundada em 1961, e que que reúne 38 países, com a finalidade de estimular o progresso econômico independente dos desejos ou intenções dos políticos, nos próximos anos serão criados 69 milhões de novos empregos, calculados sobre a redução da jornada de trabalho semanal e um imenso protagonismo das tecnologias digitais que, por sua vez, farão desaparecer 83 milhões de postos de trabalho ou competências da força de trabalho. Sem a pretensão de profetizar, acontecerá no limiar de uma nova civilização.
Provavelmente, depois que as águas baixarem, o Rio Grande do Sul e o Maranhão servirão de laboratórios para o surgimento de um novo gaúcho, mais integrado e mais qualificado, e com visões humanitárias, solidárias e sensíveis. A recuperação dessas 254 cidades gaúchas – algumas serão totalmente reconstruídas – vai não só dar tempo para se pensar no mundo a ser legado para novas gerações que transitará por milhares de oportunidades, obras e empregos com perfis novos: uma dialética despertada da miséria humana.
Será a reconfiguração da vida gauchesca, desde as condições materiais, a divisão social do trabalho até a relação comunitária, cuja gestão será mediada já no ambiente de competências cibernéticas, e não mais pelos tribunais “de faz de contas”. A IA, poderá se apropriar, entretanto, da mente e dos corações dos novos gaúchos. Virá deglutindo conhecimentos e oferecendo qualificações, ideias e soluções ainda não formuladas.
O Brasil está diante de uma reforma do ensino médio, preocupada com o futuro, cada dia mais imprevisível, cujas virtudes maiores seriam a escola integral, o ensino à distância e a democratização do acesso às tecnologias, o que exigirá o desenvolvimento de um novo quadro didático-pedagógico, formulações filosóficas compatíveis, superação de obstáculos corporativos já envelhecidos. O projeto da educação foi, entretanto, desenvolvido num cenário politicamente polarizado, corporativizado, retrógrado e confuso desses últimos anos, de tal maneira que os educadores terão dificuldade de desconstruir o próprio ambiente em que convivem. Certamente, a sua implantação enfrentará os ranços remanescentes sobre os quais a IA certamente vai passar a borracha.
Não parece haver mais jeito de conter a nova pedagogia digital, que transitará, certamente, sobre a ideia de um mundo comum, justo e democrático, e não será fruto de uma “revolução cultural” que, entre os chineses, exigiu ignorar princípios humanitários. A população reagiria à tentativas esdrúxulas de mudanças estruturais com aquele perfil.
Entretanto, o projeto da reforma do ensino, no Brasil, está ainda muito centrada na ideia de formar trabalhadores, técnicos. Em nome dela, bárbaros veiculam barbaridades sobre e novo mundo, assentados nas banalidades do cotidiano. Muitos brasileiros ainda tem dificuldade de lidar com o diferente e com o novo. Os brasileiros trafegam, contudo, sem perceber dentro de limites tênues entre o que seria o politicamente correto, o desvendamento de conteúdos, o ódio, e as fake news.
É importante, por isso, ter uma educação política e crítica – não ideologizada – capaz de formar cidadãos aptos a conviver com as diferenças e respeitá-las. A saída, segundo Esther Galego, da Unifesp, é a alfabetização digital, logo na infância, aproveitando-se o potencial de apreensão deste novo mundo, no percurso que se inicia: educar o brasileiro a se relacionar com as virtudes humanitárias, as novas tecnologias e de fazer uso delas para o bem estar da sociedade, reagindo de maneira responsável e consciente às insinuações surgidas do narcisismo dos políticos.
Pode ser um opção de vanguarda.
_________________________
Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural, ex-guarda florestal do Parque Nacional de Brasília Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018
Autor, entre outros, de Lanternas Flutuantes:
Português – LANTERNA FLUTUANTES, habitando poeticamente o mundo
Alemão – Schwimmende-laternen-1508 (Ominia Scriptum, Alemanha)
Inglês – Floating Lanterns
Polonês – Pływające latarnie – poetycko zamieszkiwać świat
novo livro de Aylê-Salassiê: TERRITÓRIO LIVRE!