Saudosismo ou bom senso? Por Aldo Bizzocchi
Saudosismo ou bom senso?… Minha percepção é de que estamos vivendo justamente a decadência e talvez o colapso de nossa civilização. Se houve um significativo progresso material e cultural a partir do Renascimento, que atingiu seu apogeu entre os séculos XVIII e XX, hoje estamos vendo nosso castelo de cartas desmoronar.
Li outro dia o artigo de um cronista cujo nome não retive afirmando que os velhos são saudosistas não porque antigamente o mundo fosse melhor e sim porque eles eram melhores. Sem dúvida, qualquer um que tenha chegado à cinicamente chamada “melhor idade” sente saudade de sua juventude e do vigor físico de que então desfrutava. Além disso, todos tendemos a nos fixar em modas e costumes que adquirimos no início da vida, até porque mudar nossos hábitos e preferências (musicais, literárias, etc.) é custoso. Por fim, há a memória sentimental: canções antigas, filmes do tempo em que se era jovem trazem sempre boas lembranças.
Mas o ato de deplorar os tempos atuais pode ser mais do que mera rabugice da terceira idade; em muitos casos, pode ser sinal de sensatez. Vocês podem objetar dizendo que em todas as épocas os mais velhos eram saudosos do passado e avessos ao presente e também que em muitos aspectos a realidade atual é melhor que a pretérita. De fato, vivemos melhor hoje do que no tempo das cavernas ou na Idade Média, mas, dada a curta duração da nossa vida, ninguém obviamente tem lembrança de como era a vida em tempos pré-históricos ou medievais. Mas, neste momento em que escrevo, ainda há muitas pessoas que se recordam de como era a realidade 50, 60, 70 anos atrás. E por isso têm a dimensão de como a sociedade e a própria civilização vêm decaindo ao longo do tempo.
Em primeiro lugar, sentem o impacto da piora de sua qualidade de vida. Embora vivam mais, graças aos avanços da medicina, contemplam hoje problemas que não existiam em sua juventude: trânsito caótico, violência urbana, aumento da criminalidade, proliferação das favelas, epidemia das drogas, onipresença do crime organizado, embrutecimento das relações pessoais, império do individualismo, poluição, aquecimento global e as consequentes mudanças climáticas, desmatamento, pandemias, banalização do sexo, alienação da juventude, discursos de ódio, amplificados pelas redes sociais, spams, telemarketing, disseminação de fake news, precarização do trabalho, dependência patológica dos smartphones, automatização e robotização das atividades humanas, desumanização do ser humano, consumismo desenfreado, entretenimento alienante, celebridades acéfalas, apologia do lixo cultural, pasteurização e mercantilização da arte…
Em segundo lugar, até algum tempo atrás as pessoas nasciam, viviam e morriam sem perceber grandes mudanças em seu modo de vida: o indivíduo escolhia uma profissão, arranjava um emprego, fazia carreira e lá se aposentava. Tinha filhos e os encaminhava da mesma maneira. Hoje, as mudanças sociais impulsionadas pela tecnologia são tão rápidas que um jovem entra na faculdade aos 18 anos e, quatro anos depois, quando se forma, pode ser que a profissão que estudou não mais exista.
Além disso, todos hoje vivemos estressados pelo excesso de informações, que se multiplicam mais rápido do que podemos assimilá-las e sem que tenhamos tempo de filtrar o que é relevante e o que é apenas ruído. O bombardeio de informações, na maioria das vezes inúteis, não deixa de ser mais uma forma de poluição.
É comum a sensação de que a civilização sempre melhora, tanto que a ideia de progresso já existia na Roma antiga (os romanos admiravam uma coisa chamada progressio, literalmente, “marcha adiante”), logo o presente é sempre melhor que o passado, e o futuro será melhor que o presente. O problema é que as sociedades passam pelos mesmos estágios que as pessoas: nascem, crescem, se desenvolvem, atingem seu auge e então começam a decair até entrar em colapso e desaparecer.
Minha percepção é de que estamos vivendo justamente a decadência e talvez o colapso de nossa civilização. Se houve um significativo progresso material e cultural a partir do Renascimento, que atingiu seu apogeu entre os séculos XVIII e XX, hoje estamos vendo nosso castelo de cartas desmoronar. E essa queda parece estar sendo bem rápida. Portanto, os mais velhos não são saudosos apenas dos tempos em que eram melhores, mas de um tempo não muito distante em que o mundo era bem melhor.
Se é verdade que em todas as épocas os idosos recordam o passado com nostalgia e desdenham do presente, hoje essa atitude tem mais uma razão de ser, tanto que já se veem jovens de 30, 35 anos saudosos do mundo de 15, 20 anos atrás. Recentemente, o Ministro do STF Alexandre de Moraes disse em relação à virada do século XX para o XXI, quando ainda não havia redes sociais, que “nós éramos felizes e não sabíamos”. E ele tem 57 anos, estando ainda longe de ser um idoso. Diante do Facebook e do TikTok, o finado Orkut chegava a ser romanticamente ingênuo. Frente aos viciantes smartphones de hoje em dia, os celulares dos anos 1990, que funcionavam apenas como telefones e nada mais, eram inofensivos. Em face dos aliciantes videogames da atualidade, cheios de violência e imagens e sons hipnóticos, os joguinhos eletrônicos dos anos 1980 eram tão inócuos quanto bolinhas de gude.
Desde fins do século XIX, vivemos constantes revoluções nos costumes provocadas por inovações tecnológicas. Primeiro, o telefone, depois a lâmpada elétrica, o automóvel, então o telégrafo, o fonógrafo, o cinema, o rádio, a televisão, o videocassete, o fax, o computador pessoal, o telefone celular, a internet, as redes sociais, a inteligência artificial, num processo cada vez mais acelerado e do qual temos cada vez menos controle.
Se antes sentir-se deslocado, mal adaptado e mesmo supérfluo era sintoma de velhice, hoje esse sintoma começa a ser sentido cada vez mais cedo, pois estamos caindo na obsolescência cada vez mais jovens. Logo, ter saudade do passado, mesmo de um passado recente, não é necessariamente indício de envelhecimento — pode ser sinal de bom senso.
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Aldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.
Acaba de lançar, pela Editora GrupoAlmedina,
“Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”
Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br
e-mail: aldo@aldobizzocchi.com.br