O cavalo subiu no telhado. Por Fernando Gabeira
By Chumbo Gordo 6 meses agoPUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO E NO SITE DO AUTOR, www.gabeira.com.br, 13 DE MAIO DE 2024
Durante muitos anos, falei em aquecimento global, preparação das cidades, resiliência, essas coisas. Muito mais eficaz que todos os meus argumentos é a imagem de um cavalo de 350 quilos no telhado de um bairro inundado de Canoas, no Rio Grande do Sul. A imagem de Caramelo — esse é o nome que lhe deram nas redes sociais — emocionou muita gente, até pelo delicado resgaste realizado pelos bombeiros. Destaco essa imagem na tragédia porque ela tem a força de desarrumar um pouco nossa lógica, provocar um rápido curto-circuito mental e, consequentemente, abrir a cabeça para a realidade que não conseguimos ver.
Escrevi um longo artigo sobre as mudanças climáticas para a revista da Academia Brasileira de Letras e usei como título o verso de Bob Dylan: Alguma coisa está acontecendo, mas você não sabe o que é. A imagem do cavalo no telhado economizaria dramaticamente meus argumentos. Sou muito ligado a esses acontecimentos que mudam subitamente nosso modo de ver. No passado, escrevi um artigo sobre o goleiro colombiano Higuita. Ele estava prestes a defender uma bola à meia altura, e o normal seria abraçá-la junto ao peito. Higuita deu um mergulho apontando a cabeça para o chão e, num golpe, rebateu a bola com as duas pernas levantadas. Na época, usei como um exemplo de criatividade.
Acredito que os mestres zens usem muito essas mexidas bruscas no nosso modo de ver as coisas para passar suas lições. Os próprios koans desafiam o senso comum. A verdade é que o Brasil está em cima do telhado, não apenas Caramelo. Ou nos adaptamos celeremente às mudanças climáticas ou podemos ser destruídos. Não se trata apenas de tempestade. Há o aumento do calor, a alta do nível dos mares, tema que nos atinge seriamente. Quem quiser ter uma ideia, basta visitar a Praia de Atafona, no Estado do Rio.
Há problemas em Pernambuco, Santa Catarina e muitos outros lugares. No caso do Rio Grande do Sul, que espero supere o mau tempo a partir de hoje, há o grande desafio da reconstrução. Um caso a estudar é a reconstrução de Nova Orleans. Muitos pontos destruídos ainda têm marcas para que as pessoas não esqueçam. Foi erguido também um Memorial do Katrina, nome do furacão que devastou a cidade em 2005. O comportamento dos políticos tem de mudar rápido. Apenas três deputados gaúchos destinaram verbas de prevenção às enchentes. A Prefeitura de Porto Alegre não investiu um centavo nesse item em 2023. Como deputado, participei dos projetos que versam sobre recursos hídricos. Criamos os comitês de bacia, instrumento adequado para gerir bacias hidrográficas.
Os prefeitos fazem plano de desenvolvimento sem levar em conta os vizinhos, o conjunto da bacia. As mudanças climáticas exigem uma grande virada em nossa cabeça. O comportamento suicida do Congresso, a tendência de empurrar com a barriga, mesmo entre os que reconhecem a crise climática — tudo isso apenas precipita o desastre. As enchentes no Sul são um aprendizado.
Gosto de planejar cartilhas para esses tempos e percebi um novo item muito importante: não deixar os bichos para trás. Não é apenas por causa de Caramelo, mas de milhares de cães e gatos, alguns certamente mortos pela força das águas. Ficar sem água potável no meio de uma grande inundação também é um problema singular. Teremos de pensar nisso: kits de descontaminação, usinas que produzam água limpa.
Na verdade, é muita coisa para pensar, um mundo novo a planejar. Precisamos ter a ideia de onde estão as grávidas, quem precisa de hemodiálise, como conservar insulina com o colapso das geladeiras. Infelizmente, um problema de saúde, solucionável a curto prazo, me impediu de estar no Rio Grande do Sul.
Brevemente espero estar lá e também me dedicar, dentro dos meus limites, a essa gigantesca transição que o país precisa realizar.