A enchente do 41. Por José Horta Manzano
… Este escriba, que é velho mas não a esse ponto, não poderia lembrar, de memória, da enchente porto-alegrense de 1941. Mas os jornais, que a gente imagina possuírem arquivos robustos, deveriam ter comparado, desde os primeiros dias, a inundação atual com a de oitenta anos atrás…
Assinalo um relato do qual, pessoalmente, não havia ouvido falar: a enchente que o Rio Grande do Sul sofreu pouco mais de oitenta anos atrás. O jornal O Globo publicou hoje uma carta redigida em 1941 por uma jovem gaúcha. A moça, que tinha vindo passar uns dias com a família em Porto Alegre, dá uma descrição detalhada, em conformidade com seu estatuto de “testemunha ocular da História”.
Faz a relação dos acontecimentos daqueles dias. Menciona os bairros inundados. Reclama que, durante dias, a cidade ficou às escuras, sem trens, sem água, sem leite e sem jornal. Imagine, num tempo em que o jornal era o veículo que trazia todas as notícias – as boas e as más – ficar sem ele. Era como se, hoje, internet apagasse por uma semana.
A carta conta ainda o sufoco de parentes e conhecidos da missivista que, vítimas das enchentes, tornaram-se flagelados, palavra hoje menos usada nesse contexto, substituída por desabrigados. A missiva vem numa escrita de nível equivalente ou até superior ao que hoje conhecemos como português padrão.
As frases tem começo, meio e fim. Os verbos estão bem conjugados. As concordâncias estão todas coerentes. A ortografia, anterior à reforma de 1943, ainda conserva saborosas reminiscências de outras eras: sahiram, mez, assoalho (em vez de chão), cousa horrorosa, e por aí vai.
Tenho lido reportagens e artigos sobre a catástrofe do Rio Grande do Sul. Para mim, precisou aparecer essa cartinha, pescada de algum baú (bahu?), pra ensinar que a mesma barbaridade já aconteceu em maio de 1941. Com as mesmas consequências.
É verdade que o estado era menos populoso, assim como é verdade que as cidades eram menos apinhadas. Assim mesmo, morreram brasileiros, afogaram-se animais e gado, arruinaram-se lavouras, pontes, estradas e instalações.
Este escriba, que é velho mas não a esse ponto, não poderia lembrar, de memória, da enchente porto-alegrense de 1941. Mas os jornais, que a gente imagina possuírem arquivos robustos, deveriam ter comparado, desde os primeiros dias, a inundação atual com a de oitenta anos atrás. A mídia gaúcha relembrou enchentes do passado, mas os jornais de circulação nacional foram menos atirados. A menos que eu tenha zapeado.
A repetição das cheias vai continuar, ainda que nossa memória falhe. Mas a memória é um componente poderoso na prevenção e na mitigação de problemas futuros.
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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