O surto do cachorro louco. Por Paulo Renato Coelho Netto
… Como em um filme, tudo ficou mudo. Só conseguia enxergar a boca do cachorro louco abrindo o dobro da capacidade de uma mandíbula humana. Nem de longe se parecia com o rapaz educado, inteligente e bem humorado que sempre foi…
Festival de Teatro em Três Lagoas, divisa de Mato Grosso Sul com São Paulo. Tonico Pereira estaria por lá. Aos 18 anos, tudo que se quer é viver intensamente. Resolvemos ir de trem, eu e o cachorro louco, um amigo cinco anos mais velho.
Embarcamos em Campo Grande na antiga Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB).
Na década de 80 viajar de trem a Leste, para Três Lagoas, sentido Bauru (SP), ou para Corumbá, a Oeste, fronteira com a Bolívia, era corriqueiro.
De Miranda a Corumbá o trem cruzava o pantanal. Aproximadamente duzentos quilômetros de viagem dentro de um cenário paradisíaco, com direito a ver o pôr do sol sobre o Rio Paraguai.
Esta ferrovia era chamada, equivocadamente, como Trem da Morte.
O Trem da Morte, na verdade, partia do vilarejo boliviano Puerto Quijarro, próximo a Corumbá, rumo a Santa Cruz de La Sierra.
Corumbá era um entroncamento onde tudo e todos se encontravam sobre trilhos. Indígenas, estudantes, sul-americanos de todos os países, artistas, pescadores, viciados, prostitutas, traficantes, estrangeiros, fotógrafos, mochileiros europeus e norte-americanos.
O mundo cabia naquele trem.
Viajar na Noroeste do Brasil era, por si só, uma volta ao passado. Os vagões eram de madeira avermelhada das laterais ao teto.
Na estação, da roleta de entrada à bilheteria, todas as peças tinham, no mínimo, cinquenta anos. Até a pequena rua da esplanada ferroviária em Campo Grande era de paralelepípedo. No ar, o cheiro óleo diesel, combustível usado nas locomotivas.
Havia três opções de passagem. A popular, vagões simples com bancos de madeira; a executiva, com poltronas estofadas verdes e as cabines, com camas beliche, banheiro e até chuveiros.
A bitola estreita, espaço de apenas um metro entre os trilhos, fazia com que vagões balançassem lentamente para os lados como um boneco joão-bobo. Excelente para dormir.
Uma história que teve início em 1905 – em Bauru – e que se perdeu ao longo dos anos, como quase tudo que merece cuidado e reconhecimento para se manter vivo no Brasil.
A ferrovia era meio de transporte, integração e comunicação dos moradores que viviam ao longo dos 752 quilômetros entre Três Lagoas e Corumbá. Uma via de pioneirismo.
Veterinário, o cachorro louco era um desses caras bem nascidos, sem problemas de dinheiro e sem papas na língua.
No fim da tarde fomos para o vagão-restaurante, um lugar com mesas e garçons, mais apropriado para conversar.
Lá fora, o crepúsculo em um cenário bucólico. O trem das cores no cerrado.
Pedimos água e cerveja. O que veio a seguir foi uma das cenas mais inusitadas que presenciei na vida.
O garçom explica que só poderíamos ficar ali se pedíssemos a janta.
Educadamente o cachorro louco explica que, mais tarde, por óbvio, iríamos jantar, mas não naquela hora.
O garçom insiste. No restaurante, só jantando.
Percebo os primeiros sinais físicos de mudança no cachorro louco. Contrariado, o rosto ficou vermelho. Os olhos brilharam.
– Traz a cerveja, a água e uma janta. Coloca a janta na mesa que mais tarde, quando der fome, você leva esta e traz duas refeições quentes.
Refeições quentes era uma forma bastante sofisticada para se referir ao cardápio que, nada mais era, que um prato feito com arroz, feijão, bife acebolado e uma salada servida numa bandejinha simplória de inox. A única variação possível seria incluir um ovo frito, cobrado à parte por unidade.
– São duas pessoas, janta para dois, responde irredutível o garçom, vestindo o uniforme surrado, camisa branca puída, gravata e calça preta desbotadas.
Sentindo-se injustiçado, incompreendido e provocado, o que faltava para o cachorro louco justificar o apelido aconteceu. O tom de voz subiu.
– Faz o seguinte, sugeriu o cachorro louco no limite da paciência. Traz a cerveja, a água e duas jantas. Mais tarde, quando der fome, você leva as duas jantas frias e traz duas jantas quentes.
– Tem que jantar, responde o garçom.
Imagino que a insistência seria para que jantássemos e desocupássemos a mesa para que os demais passageiros pudessem fazer o mesmo.
– É para o prato ficar vazio? pergunta o cachorro louco. Se for, traz que vou jogar a comida na sua cara.
Nessa hora, pela primeira vez, o cachorro louco tira os olhos do garçom, olha para mim e sorri um sorriso estranho, do tipo Anthony Hopkins no filme “O Silêncio dos Inocentes”.
O garçom fica atônito.
A essas alturas o cachorro louco bufava, o restaurante começava a receber mais passageiros, o cozinheiro com o serviço parado e o tiozinho que ticava passagens com um ar de que nunca havia visto nada igual. Nem ele, muito menos eu. O problema é que o cachorro louco estava comigo, promovido à categoria de tutor de cachorro com raiva, sem coleira e focinheira.
Naquele momento percebi que o apelido não era brincadeira. Só que ninguém havia me avisado.
Como em um filme, tudo ficou mudo. Só conseguia enxergar a boca do cachorro louco abrindo o dobro da capacidade de uma mandíbula humana. Nem de longe se parecia com o rapaz educado, inteligente e bem humorado que sempre foi.
Deve ser isso que chamam de surto psicótico, quando se perde a conexão com a realidade.
Estávamos a meio milímetro de uma tragédia.
A turma do deixa disso chegou e os ânimos voltaram ao normal. Levou tempo.
Voltei sozinho para casa. De ônibus.
Como massa folhada, quantas camadas de personalidade cabem em um ser humano até chegar à verdadeira essência de cada um?
Como nas bonecas russas, quantas matrioskas, com personalidades distintas, podem existir dentro de nós?
O médico e o monstro. O religioso pedófilo. O patinador educado e maníaco do parque. O funcionário público pacato que bebe de sexta-feira até a noite de domingo. O empresário do ano que bate na mulher. O pai que joga a filha pela janela do apartamento. O jogador de futebol estuprador. O hooligan que sai de casa para brigar. O piti dos artistas. A modelo com bulimia. O professor assediador. O policial corrupto. O sujeito que mata a tiros um pai de família só porque não gostou da decoração da festa para a qual não foi convidado. O vizinho reservado, educado, narcotraficante.
De perto ninguém é normal.
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Paulo Renato Coelho Netto – é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”.