O sofrimento e a ternura em Adoniran. Por Antônio Claudio Mariz de Oliveira
… A revolta diante do sofrimento ficou fora das composições de Adoniran. Na realidade, o conformismo posto em suas músicas reproduz o conformismo do próprio povo brasileiro em face das dificuldades e das injustiças sofridas…
PUBLICADO EM "MARIZALHAS", MIGALHAS, EDIÇÃO DE 10 DE ABRIL DE 2024
Um dos compositores que melhor retratou realidades sociais específicas foi Adoniran Barbosa. As letras de suas músicas, na verdade crônicas musicadas, souberam ingressar com fidelidade no cotidiano de pessoas que constituíram segmentos sociais de relevância na vida de São Paulo.
Os imigrantes italianos, os habitantes das regiões periféricas e de alguns bairros paulistanos constituíram os temas de sua preferência. Soube reproduzir toda uma cultura que marcou aquelas populações, inclusive utilizando um linguajar característico. Os erros cometidos na pronúncia são correntes no palavreado comumente utilizado.
As notórias carências sociais que atingiam essas pessoas eram reproduzidas em suas canções de uma forma espirituosa, bem-humorada e complacente.
Interessante notar que em todas as “tragédias” narradas há uma manifestação de aceitação e de conformismo. É como se o destino dessas pessoas estivesse pré-traçado e fosse inevitável. A temática social de Adoniram sempre veio acompanhada de uma palavra de conforto e aceitação em contraposição às posteriores músicas de protesto compostos por inúmeros autores. Duas formas de denunciar uma realidade que nos acompanha há séculos.
Na célebre “Saudosa Maloca” quando “Mato Grosso quis gritá mas em cima eu falei os homi tá cá razão nós arranja outro lugar”, o Joca completou o consolo “Deus dá o frio conforme o coberto” e foram pegar “praia nas grama de jardim”.
O tema da morte também surge acompanhado do apelo de conformismo. Em “Iracema”, após narrar o atropelamento de sua futura esposa na Avenida São João e de quem ele apenas ficou com “suas meias e seu sapatos”, ele conclama “paciência, Iracema, paciência” não sem antes isentar o chofer de “curpa”.
A revolta diante do sofrimento ficou fora das composições de Adoniran. Na realidade, o conformismo posto em suas músicas reproduz o conformismo do próprio povo brasileiro em face das dificuldades e das injustiças sofridas. Trata-se de mais uma característica de nossa gente que ele soube transpor com exatidão para as suas obras.
…Ao lado desse viés voltado para desgraças e sofrimentos, há melodias com letras suaves, amorosas, que denotam ternura e meiguice, sempre dentro de contextos simples de pessoas humildes…
“Despejo na Favela” e “Aguenta a Mão João” são duas outras narrativas de desvalidos que ficam privados de seus tetos, tal como em “Saudosa Maloca”. A primeira se refere aos despejos de moradias em uma favela. Os moradores têm dez dias para sair de seus barracos e não possuem local para se abrigar. A outra também reflete uma desgraça que se abateu sobre um habitante de barracão que foi destruído por um temporal. Fala para ele não reclamar, pois “a chuva só levou a sua cama” sendo que com o Cibide foi pior, pois a “enxurrada levou seus tamanco e o lampião”
Ao lado desse viés voltado para desgraças e sofrimentos, há melodias com letras suaves, amorosas, que denotam ternura e meiguice, sempre dentro de contextos simples de pessoas humildes.
Por exemplo, “Prova de Carinho”, na qual ele “faz uma aliança para ela” com a “corda mi do meu cavaquinho”. Confessa ter feito muito sacrifício, pois “o cavaquinho já não pode mais gemer”, para dar a prova “do meu bem querer”.
“Trem das Onze” ; “As Mariposas” ; “Samba do Arnesto” ; “Torresmo à Milaneza”; “Vila Esperança”; “Samba Italiano” e muitas outras repletas de comicidade e espírito crítico, demonstram uma inteligência vivaz e uma excepcional capacidade criativa e um invulgar senso de observação do cotidiano desse magnifico cronista da pauliceia que ele tanto amou.
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões.