nascente

A nascente. Por Antonio Contente

  — É uma nascente sim! – Ele confirma, ao mesmo tempo em que se curva e, com as mãos em concha, apanha um pouco do líquido cristalino que brotava das pedras, da terra.

NASCENTE

Corriam os anos setenta, e o casal vinha pensando em comprar uma chácara. O detalhe é que queriam o terreno exatamente entre Campinas e São Paulo, pois era entre estas duas cidades que se dividiam. Dinheiro para a compra havia, não que a dupla fosse rica. Estavam, porém, naquele estágio que os práticos rotulam como “bem de vida”. Ainda mais que, para complementar, haviam recebido boa herança de parentes residentes em Mato Grosso do Sul.

Pois bem, acabou sendo quase por acaso que encontraram a tal chácara. Viajavam de Sampa a Campinas, para a visita costumeira à mãe da moça e aos muitos amigos, quando, na altura de Jundiaí, o pneu do carro furou. Por sorte, perto de um posto de gasolina, no qual logo entraram. Ali, enquanto o conserto era feito, o casal sentou na lanchonete para um café. Súbito, o marido pergunta ao garçon:

         — Será que a gente não arruma uma chacrinha barata por aqui?

         — Chacrinha? Claro. Está vendo aquele senhor ali, o de camisa azul? Ele transa com isso.

         Menos de uma hora depois lá estavam eles entrando, o corretor à frente, num simpático terreno, plano e arborizado. No centro havia uma casa de certa forma rústica, porém o encanto do lugar tinha seus melhores argumentos na vegetação farta, que incluía alguns flamboyants, além sibipirunas, oitis, acácias e ipês.

         — Vem – o futuro comprador esticou a mão à esposa – vamos dar uma andadinha por aí.

         Enquanto o corretor permaneceu de pé na entrada da casinha, os dois saíram, em passos largos, por caminho aberto no meio da relva. No ar, além da brisa fresca de um especial setembro, trinados de passarinhos, que é o mínimo que se pode exigir de uma chácara com dignidade. Súbito, a moça para, apontando:

         — Olha lá, o que é aquilo?

         — Onde? – O marido espreme os olhos.

         — Na baixada. Próximo às plantas, no meio das pedras.

         Caminharam na direção da coisa e, logo, o camarada exultou:

         — Puxa vida, é água.

         — Uma nascente! – Os olhos da mulher brilham.

         — É uma nascente sim! – Ele confirma, ao mesmo tempo em que se curva e, com as mãos em concha, apanha um pouco do líquido cristalino que brotava das pedras, da terra.

         Voltaram então, quase correndo, para falar com o corretor.

         — Pois é – ele abre os braços – a nascente. Tinha até esquecido dela…

         — Será que é limpa? – O comprador quis saber.

         — Puríssima. Mineral, como as melhores de Campos do Jordão.

         Foi assim que adquiriram a chácara e passaram a dedicar a ela todas as horas vagas, nem só nos fins de semana. E a dedicação se ampliou de tal forma que, em pouco tempo, a casinha rústica se transformou. Não em algo cinematográfico como a que o ex-presidente Lula possui em Atibaia e garante a ele não pertencer, o que muito trouxa ainda acredita. Porém, a casinha do casal da nossa história ficou linda. Digna de figurar em qualquer revista de decoração.

         Cuidados mais que especiais, contudo, o casal reservava à fonte, à nascente. Cuidaram com carinho da limpeza das cercanias, plantando em volta um jardim tão singelo quando as circunstâncias permitiam, mas tão exuberante quanto os sonhos a que ele remetia. Tudo pronto, certa tarde o marido e a mulher, vendo a água claríssima a escorrer entre as pedras e as flores, ficaram francamente comovidos. De repente, porém, a senhora levanta a dúvida:

         — Será, amor?

         — O que? – Ele a encara com as sobrancelhas erguidas.

         — Será – ela aponta – que essa água não é de algum vazamento da Sabesp?

         — Sabesp?

         — É, a Sabesp. Que cuida dessas coisas de distribuição d’águas.

         O camarada olha, coça a cabeça. Depois murmura:

         — Pode ser. Na verdade, pode ser. Deve ter encanamentos passado por aqui. Afinal, Jundiaí não é longe.

         — Vamos mandar verificar? – A mulher sugere.

         Depois de pensar um pouco, o rapaz abre os braços num “sabe o que eu acho”?

Em seguida, sério, coloca:

         — Mas verificar pra que? Para acabar com a nossa nascente?

         Daí, saíram andando, tranquilos, para a casa. E durante os vários anos que lá ficaram, o encanto do lugar, para eles, era realmente a fonte. E quando precisaram vender a propriedade porque o homem, de repente, teve uma enfermidade que necessitava de cuidados urgentes, levaram a certeza de que a água, realmente, vinha de um vazamento da Sabesp. O que, afinal, não era verdade. Uma vez que no local, hoje, uma dessas empresas que engarrafam água mineral tem uma de suas melhores fontes…

       ____________

Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

_____________________________________________________________

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assine a nossa newsletter