O síndico da torre de Babel. Por Paulo Renato Coelho Netto
… Eleito síndico pela primeira vez, Alcebíades teve a brilhante ideia de pintar o prédio para iniciar sua gestão em grande estilo. Pediu orçamento e cinco modelos diferentes de pintura da empresa que faria o serviço…
Eleito síndico pela primeira vez, Alcebíades teve a brilhante ideia de pintar o prédio para iniciar sua gestão em grande estilo. Pediu orçamento e cinco modelos diferentes de pintura da empresa que faria o serviço. A opção de cor mais votada seria a escolhida. Tudo democraticamente.
Tivesse apresentado duas opções, repintar da cor original, ou da cor original com um pequeno detalhe na portaria, certamente o caos não teria se instalado entre os condôminos.
Como na Torre de Babel, os moradores passaram a falar idiomas diferentes. Ninguém se entendeu mais. Além das cinco cores sugeridas, outras propostas surgiram ao melhor estilo “a minha é a melhor”.
Ignorando o princípio elementar de que gosto não se discute, Alcebíades foi ao inferno à procura de luz. No afã de agradar a todos, sucumbiu sem agradar ninguém.
Os pedidores de impeachment o colocaram na alça de mira.
A ala mais conservadora de ultradireita exigiu que o prédio deveria manter a cor original. Qualquer tom que fugisse à tradição mudaria o prédio, a família, a propriedade e até a paisagem bucólica do bairro.
A novidade visual, para essa turma, teria potencial para mudar a cidade inteira, em efeito cascata.
Conservadores odeiam mudanças.
Os elevadores social e de serviço viraram octógonos de MMA. Ninguém mais dava bom dia, boa tarde ou boa noite. Assim que abriam a porta, bastava ter alguém lá dentro para dar início à escaramuça.
A turma do nem aí optou pelas escadas.
Ao se verem contrariados, os rancorosos se remoeram de rancor no subsolo da garagem.
Os deprimidos sugeriram cinquenta tons de cinza escuro no novo visual, com uma tarja preta no meio do edifício.
Um jovem universitário do nono andar, admirador de Vincent van Gogh, Pink Floyd e Cannabis sativa, entregou um desenho de próprio punho com a fachada multicolorida remetendo a um caleidoscópio indiano.
Algo que abrisse espaço a novas reflexões afim de “transformar para melhor esse mundo careta, enfadonho, ninguém solta a mão de ninguém”, segundo suas próprias palavras.
A arquiteta blogueira do décimo andar, de forma altruísta, pesquisou com muito cuidado e carinho algumas opções para orientar os moradores com as tendências em alta na paleta de cores que fariam sucesso nos próximos meses.
As sugestões seriam, evidentemente, colocadas no Instagram dela, com a condição que curtissem e dessem o like na página.
Cores separadas a dedo. Uma predominante, outra secundária para se fazer a combinação e deixar tudo muito bonito. Novidades que ela acabou de trazer do bairro Little Italy, um dos mais famosos de Nova Iorque.
Primeira opção, patativa com cinza crômio. Puro luxo. Segunda, açúcar orgânico com duna maranhense. Modernidade é isso. Terceira, afrobeat clássica fosca com oceano índico. A personificação da ousadia.
Ninguém comentou. Nenhum like sequer. Sentindo-se totalmente menosprezada, a arquiteta se mudou do prédio sem se despedir de ninguém, incluindo funcionários, terceirizados e moradores monoglotas.
Ocorre que Alcebíades era um gay sessentão marrento. A eleição da pintura seria fraudada com auxílio do voto eletrônico. Sem direito a auditoria do general de pijama aposentado do sétimo andar e a revelação prévia do código fonte.
A escolha das cores tinha tanta validade quanto eleições na Rússia ou Venezuela. O prédio seria pintado ao gosto do novo mandatário, assim como tudo ali que passaria por mudanças, dos móveis do hall aos brinquedos do parquinho.
Serviço feito, o síndico inaugurou a pintura no salão de festas com um jantar apenas para convidados vips, com a taxa de condomínio em dia, onde anunciou seu noivado. Se casaria com um pintor externo do prédio.
Se conheceram quando Alcebíabes, cantarolando ópera na sacada, enquanto espantava o calor com um leque de bambu japonês, viu João passar pela cadeirinha pendurada na corda.
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Nota do autor: Crônica escrita em homenagem ao amigo Pedro Mattar. Um dos melhores cronistas brasileiros, Pedro Mattar era um gênio afável e bem humorado. Quando fez 80 anos, avisou: “Quem quiser me dar parabéns, aproveita. Será o último”. Morreu meses depois.
Beijos, Pedro!
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Paulo Renato Coelho Netto – é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, VICE Brasil e Observatório da Imprensa. Foi repórter no jornal econômico Gazeta Mercantil e no Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais, “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”.
Adorei, uma delícia de texto
Grato, Myrthes Vieira! 🙂