Gênero e as batalhas da Guerra Cultural. Por Fernando Gabeira
By Chumbo Gordo 7 meses agoQuando deputado, tratei, entre outras, das questões de gênero. Jamais imaginei, entretanto, que, anos depois, viessem a ser tema de uma guerra cultural planetária, que o movimento LGBT+ fosse classificado como terrorista na Rússia e que a extrema direita fosse fazer disso sua principal bandeira de luta.
Volto ao assunto nesta semana, provocado por dois episódios isolados: o embate da famosa escritora J.K. Rowling com a nova lei escocesa contra o discurso de ódio e a leitura do livro de Judith Butler “Quem tem medo do gênero?”.
A autora de “Harry Potter” desafiou a polícia do seu país a prendê-la, sob a nova lei, pois continuaria a chamar de homens as mulheres trans e fazia isso para proteger as que nasceram como mulheres e também as meninas de seu país.
A polícia da Escócia não aceitou o desafio, reconhecendo que Rowling estava amparada pelo direito à expressão. O incidente abriu, entretanto, uma importante discussão sobre a linha divisória entre o debate necessário e o próprio discurso do ódio, extremamente perigoso para a integridade física e até a vida de jovens trans.
A ideia geral é que não só escritoras famosas, mas todos têm direito de externar suas dúvidas sobre novas leis que protegem pessoas trans, abarcando questões que vão de competições esportivas, passando pelo uso de banheiros, até a situação nas cadeias.
No entanto as palavras têm consequências e, na maioria dos casos, o que a extrema direita propaga sobre os direitos de gênero é uma visão apocalíptica que os associam à pedofilia e ao sexo com animais. Esse é o tema de Judith Butler. Ela veio ao Brasil e foi classificada como papisa da política de gêneros. Foi confrontada com manifestações em que seu rosto era pintado de forma diabólica, os olhos vermelhos e no corpo um biquíni.
Butler percebe que a extrema direita usa uma expressão marxista para designar a questão: ideologia de gênero, baseada no clássico “A ideologia alemã”. Ela descreve o medo à política de gênero como uma situação fantasmagórica, uma espécie de sintaxe que utiliza diferentes elementos de linguagem para criar um mundo extremamente perigoso.
Na base desse fantasma, ela vê um desejo de voltar a uma idílica sociedade patriarcal, em que os homens mantêm seu papel tradicional. Usando a psicanálise para definir essa visão de mundo que tem em si um medo desproporcional, Butler fala de deslocamentos e condensações, no caso união de elementos desconexos como acontece nos sonhos.
Nesse ponto tenho uma ligeira discordância. Butler acha que o fantasma ameaçador da política de gênero desloca também alguns perigos reais, como o desastre ambiental e a incerteza sobre o futuro do trabalho. Creio que a extrema direita não tem medo do aquecimento global e o considera uma farsa, no máximo um exagero. Da mesma forma, a precariedade do trabalho é vista como um fator moderno que até amplia a liberdade de escolha.
Se pudesse dar um palpite na roupagem desse fantasma, incluiria o grande medo da castração. Pelo menos é o que depreendo em inúmeros discursos de Bolsonaro, não só contra a vacina, mas até no desejo de uma campanha nacional de higiene peniana, para evitar amputações. Poderia citar cada um desses momentos e reconheço que a sugestão é inadequada para analisar o universo feminino.
No caso das mulheres, a insegurança da desaparição do clássico papel masculino, o medo do que pode acontecer com a sexualidade dos filhos e das possibilidades de violência num contexto liberal, tudo isso pode influenciar o desenho do fantasma.
O importante é continuar refletindo e aprender algumas lições. Insultos de um lado, lacrações de outro não levam a lugar nenhum, exceto ao crescimento do ódio.
Outra coisa que acho ter aprendido ao longo destes anos é que política de gênero não pode ser a espinha dorsal de campanhas majoritárias, pois isso resultaria numa inevitável vitória da direita.