A música retrata diversidades. Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira
… Quando se escreve ou se fala sobre música, o enfoque é em regra a própria composição, o compositor, o cantor, a orquestra, o arranjo, enfim, as abordagens relacionadas à própria criação e à sua execução…
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO PORTAL DO ESTADÃO, BLOG FAUSTO MACEDO, EDIÇÃO DE 21 DE MARÇO DE 2024
Quando se escreve ou se fala sobre música, o enfoque é em regra a própria composição, o compositor, o cantor, a orquestra, o arranjo, enfim, as abordagens relacionadas à própria criação e à sua execução.
No entanto, tão importante quanto ou, talvez, mais relevante é a temática que reflete a realidade histórica e sociológica de um momento determinado. No caso específico do samba, especialmente nos seus primórdios até os anos cinquenta e sessenta, foram retratadas as grandes mudanças operadas nos costumes, na cultura, no relacionamento interpessoal, no seio da família.
As mutações operadas na sociedade brasileira, que de rural passou a se transformar em urbana, assim como as alterações nos perfis das cidades, as migrações para os morros e favelas, e tantas outras novas características passaram a compor a temática musical brasileira.
A rica variação dos temas não se refere aos inúmeros gêneros musicais. Quando falo na existência da interligação entre temas diversos, estou me referindo ao mesmo gênero, especificamente ao samba.
Como exemplo, posso citar a pobreza e a riqueza. A carência e a opulência. O malandro e o trabalhador. O morro e a cidade. A favela e o palácio e inúmeros outros motes que aparentemente se contrapõem, mas mostram realidades imperantes que vieram à tona por meio da música. São composições de cunho sociológico, extraídas, muitas vezes, das experiências pessoais de seus autores.
Importantes são os sambas que retratam hábitos, costumes, a cultura de épocas determinadas, especialmente os cultivados nos setores sociais mais afastados dos núcleos de poder das elites. “Cabritada Mal Sucedida”; “Pistão de Gafieira”; ” Conversa de Botequim”; “Boas Festas”; “Lata D’Agua” “Favela”; “Feitio de Oração”; “Acender as Velas” e centenas de outros são magníficos sambas que trazem ao nosso conhecimento aspectos de um cotidiano por nós não vivenciado.
Noel Rosa, Assis Valente, Ismael Silva, Cartola, Zé Keti, Adoniran Barbosa, Chico Buarque, Caetano e outros souberam criar, por meio do samba, pontes entre dois mundos separados por quase intransponíveis barreiras sociais.
Dois extraordinários compositores, um paulista e um carioca, transformaram os seus sambas em crônicas fidedignas das nuances e características de segmentos marcados por carências de todas as espécies. As ligadas à cultura foram de forma inteligente e hilária postas por AdoniranBarbosa que reproduziu em suas letras o falar do povo paulistano, notadamente das pessoas de origem italiana.
Algumas verdadeiras tragédias impostas pelas injustiças sociais igualmente receberam um tratamento fidedigno por parte do compositor do bairro do Bixiga. Como exemplo pode-se citar “Saudosa Maloca”. Outras mostram com graça as agruras de um povo sofrido, mas não desprovido da capacidade de superar os percalços para tentar viver com alegria, principalmente não abdicando do seu gosto pela música.
O Poeta da Vila, Noel Rosa, também retratista de realidades específicas, soube abordar cenas da vida carioca, comuns nos bairros de Vila Izabel e da Lapa. A malandragem; os cabarés; a preservação da língua pátria; os seus próprios defeitos físicos; alguns costumes sociais; a empáfia e a hipocrisia das elites; as dificuldades de relacionamento com pessoas chatas, são alguns dos seus temas. Foram tratados de forma veraz, irônica, maliciosa, denotadora de uma inteligência invulgar e uma grande capacidade de captar a verdade social e a própria alma humana. Essas são caraterísticas comuns aos dois magistrais compositores, Adoniran Barbosa e Noel Rosa.
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões.