Samba: espelho da realidade. Por Antônio Claudio Mariz de Oliveira
… Já nas primeiras décadas os seus compositores, notadamente Noel Rosa, retratavam a realidade a partir do meio em que o samba se desenvolveu. Muito dessa realidade ecoava suas próprias vidas, marcadas pelas carências advindas da desigualdade reinante, que obrigava a muitos recorrerem a expedientes de duvidosa legalidade para poder sobreviver…
PUBLICADO EM "MARIZALHAS", MIGALHAS, EDIÇÃO DE 28 DE FEVEREIRO DE 2024
O samba surgiu e se desenvolveu como importante instrumento de registro da nossa realidade social e não como exclusividade musical. As suas raízes estão vinculadas às questões sociais que marcaram os últimos cem anos da história do Brasil. Os seus personagens, no seu nascedouro, já denotavam a sua origem. Eram tidos como desocupados, malandros, batuqueiros, habitantes dos morros e das favelas.
Os locais onde o samba é tocado, por vezes composto, cantado e dançado, historicamente se tornaram ambientes de sociabilidade. Sempre constituíram redutos de confraternização para uma parcela colocada à margem da sociedade. Nos seus primórdios, na cidade do Rio de Janeiro, em torno da Praça Onze, surgiram as casas das Tias, destacando-se a da Tia Ciata. O samba do partido alto, o samba de roda, batucadas e os desafios foram criando e sedimentando uma cultura musical que, não com pouca dificuldade, foi se espalhando pela cidade.
Os primeiros sambas dali passaram a ser cantados pela cidade. Mas ouve demora e resistência das elites.
Já nas primeiras décadas os seus compositores, notadamente Noel Rosa, retratavam a realidade a partir do meio em que o samba se desenvolveu. Muito dessa realidade ecoava suas próprias vidas, marcadas pelas carências advindas da desigualdade reinante, que obrigava a muitos recorrerem a expedientes de duvidosa legalidade para poder sobreviver. Não é sem razão que os conceitos de malandragem, vadiagem, ociosidade, boêmia os marcaram. O seu inato dom musical possibilitava que os compositores transformassem em música e em poesia o cenário que os rodeava, com as suas mazelas, alegrias, vicissitudes, hábitos e costumes de uma sociedade em rápida transformação.
Com a restruturação urbana do Rio de Janeiro, a Praça Onze desapareceu. O samba migrou para alguns bairros, Estácio, Vila Izabel, Lapa e subiu os morros. Nenhum desses locais representava algum bairro aristocrático da Zona Sul. Nessa o samba chegou anos depois na forma de espetáculos exibidos nas boates e nos cassinos. A sua penetração definitiva junto à burguesia ocorreu com a bossa nova, uma importante variante, que se apresentava com contornos melódicos e poéticos acentuadamente diverso do samba de origem.
As composições de Chico Buarque de Holanda “Gente Humilde” e “Malandro quando Morre”, embora da década de sessenta, reiteram um quadro que se alonga no tempo de forma imutável. A primeira mostra a dignidade na pobreza, pois sendo uma gente simples e humilde não abdica de manter no frontispício de suas casas “Aqui é um Lar”. Dignidade e humildade que nos dá “vontade de chorar”.
Em “Malandro quando Morre” Chico revela o dramático panorama do morro com a ausência de um mínimo de amparo a não ser o consolo de se saber que “menino quando morre vira anjo”, assim como “mulher vira uma flor lá no céu” e malandro quando morre ‘vira samba”.
O samba de Zé Keti “Acender as Velas” parece ter surgido para confirmar e complementar o “Malandro quando Morre”, pois explica que a morte no morro se dá porque o “doutor chegou tarde demais”, pois no morro carro não sobe e não tem “telefone para chamar”. A consequência é que “a gente morre sem querer morrer”.
São dezenas as composições com cunho social que bem demonstram ser o samba um espelho fiel da nossa realidade.
https://www.migalhas.com.br/coluna/marizalhas/402512/samba-espelho-da-realidade
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões.