Andando na floresta. Por Antonio Contente
Andando na floresta…mesmo que você conheça a área, que com ela tenha intimidades, sempre perpassa pelo nosso íntimo uma espécie de tensão de que, a qualquer momento, poderemos dar de cara, por exemplo, com uma imensa onça pintada, algo inexistente no pedaço.
A ilha onde de vez em quando me abrigo, no Delta do rio Amazonas, tem cobertura vegetal absolutamente íntegra, com imensas árvores seculares anteriores ao meu próprio raciocínio de alcance às dimensões do tempo. Como tal flutuante tufo verde a navegar pelas rotas das águas amazônicas e pelo infinito de mim mesmo tem apenas dois proprietários, isso facilita a preservação. Na minha metade não cultivo nada, apenas algumas árvores frutíferas que eu e seu Pluéricles, o caseiro, plantamos com nossas próprias mãos. Além de outras cujas sementes chegaram trazidas pelas correntes das marés lançantes nas luas cheias ou nos cocozinhos dos pássaros; e, enfim, terceiras que talvez cheguem com o vento, em pequenos galhos que, arrancados das árvores de outras ilhas, sobem muito nos temporais da Estação das Chuvas, carregando algo que fatalmente brotará ao cair em solo fértil. O outro proprietário desta porção de terra cercada de água por todos os lados, seu Geraldo, um paulista de Marília, tira sustento da parte que lhe toca. Mas nada que deforme o ambiente, pois apenas cria búfalos nativos, nas várzeas, sem necessidade de derrubar nada para a formação de pastos. Também planta ervas aromáticas para alta culinária, que comercializa com restaurantes de Belém, Nordeste e até Rio e São Paulo. Para onde exporta, há muitos anos, os maravilhosos queijos de leite de búfalas que produz com os charmes da manipulação artesanal. Nos vemos muito pouco, nem duas vezes por ano. E para fazer isso precisamos usar canoas, pois a floresta entre sua casa e a minha, de tão densa, é impossível atravessar. E a distância não passa de uns dois quilômetros.
Na verdade, amigos, descrevi este cenário para dizer como é bom andar na mata virgem através de pequenas trilhas. E mesmo que você conheça a área, que com ela tenha intimidades, sempre perpassa pelo nosso íntimo uma espécie de tensão de que, a qualquer momento, poderemos dar de cara, por exemplo, com uma imensa onça pintada, algo inexistente no pedaço. O que acaba fazendo bem extraordinário ao indispensável senso de preservação, uma vez que se fica com todos os sentidos atentos, ligados. Qualquer rumor, e eles são comuns com o passar dos ventos, provoca um olhar, uma súbita parada. Parte da terapia de estarmos devolvidos à noção do primitivo que leva a começos e descobertas. Em constantes roteiros, é indispensável que passe freqüentemente para dar um abraço em seu Carlão. Que nada mais é do que o tronco de imensa sumaumeira com mais de 300 anos, por mim batizado com o nome de um amigo que já se foi. Enrosco os braços no pedaço possível, encosto os ouvidos nas reentrâncias da árvore altíssima, e, tenho certeza, escuto o correr da seiva que dá vida a tantos galhos. Muitos deles moradas temporárias de passarinhos em épocas de reprodução, ou apenas pontos de pouso de outros cujos cantos acabam por ficar impregnados para sempre no macio da razão e na sutil certeza do impalpável de uma partitura reescrita a todo instante.
Andar numa floresta a desviar de árvores tão altas, é como percorrer o âmago da sensação do eterno. A quantidade de vida que se reproduz por todos os lados é algo tão intenso, que o comum zumbido de uma abelha saindo ou voltando ao orifício no tronco em que vive dá conta do quanto tudo ali funciona com precisão que torna acariciante a sensação de pasmo.
… Andar numa floresta a desviar de árvores tão altas, é como percorrer o âmago da sensação do eterno…
Sempre, ao voltar dessas caminhadas, me sinto impregnado de uma espécie de força que conduz ao que seja a amplitude das reconstruções interiores necessárias ao derramar da tranqüilidade. E há um ritual que gosto de cumprir como espécie de liturgia necessária ao envolvimento das orações não necessariamente impregnadas por qualquer sentido religioso. Então, com as janelas escancaradas para o pomar que é uma total e acabada síntese da vegetação da ilha inteira, escuto, no sonzinho movido à pilhas, pois não disponho de eletricidade, o “Canon e Giga”, de Johann Pachelbel (1653-1706). Se por sorte isso sucede nos horários em que passe ao longe rútila revoada de guarás migrando para os banhados da Ilha do Marajó, distante umas seis horas de barco, tenho nave para o vôo. E, integrado aos emplumados me torno, tranquilamente, um ser encantado que já se integrou às distâncias, dando-me a glória de contradizer qualquer idéia de permanência. Certamente ainda estou indo. Porém, fico; achando que fui…
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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