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O literalismo das traduções de livros no Brasil. Por Aldo Bizzocchi

… muitos desses tradutores com livre trânsito pelas grandes editoras pecam pelo literalismo das traduções, isto é, pela adoção de soluções pouco naturais ao espírito da língua portuguesa, visto que são traduções (quase) literais de expressões idiomáticas inglesas, embora soluções melhores estejam disponíveis em nosso idioma…

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Gosto muito de ler livros de divulgação científica. Mas, como a maioria dessas obras é escrita originalmente em inglês, e os livros importados são caros e relativamente raros no mercado, acabo optando por ler as edições brasileiras desses textos, traduzidas para o português por profissionais de alto gabarito — pelo menos, é o que eu deduzo, já que uma editora investe muito dinheiro nessa produção.

Entretanto, muitos desses tradutores com livre trânsito pelas grandes editoras pecam pelo literalismo das traduções, isto é, pela adoção de soluções pouco naturais ao espírito da língua portuguesa, visto que são traduções (quase) literais de expressões idiomáticas inglesas, embora soluções melhores estejam disponíveis em nosso idioma.

Tenho encontrado frequentemente nessas traduções palavras e expressões como “alegadamente”, “como resultado”, “evolucionário”, “em contraste”, “incluindo” (no sentido de “dentre os quais”), “presente” (no sentido de “atual”), e assim por diante.

“Alegadamente” é uma tradução literal do inglês allegedly, cuja melhor tradução para o português é “supostamente”: “as estrelas de nêutrons alegadamente existentes na Via Láctea…”.

“Como resultado”, expressão que, de tão usada, já se incorporou ao repertório de muitos autores brasileiros (inclusive eu, confesso) é tradução literal do inglês as a result, quando temos em português várias expressões equivalentes e menos forçadas, como “consequentemente”, “por conseguinte” “em decorrência”, etc.

Livros sobre teoria da evolução e biologia evolutiva com frequência trazem o adjetivo “evolucionário”, que até consta nos dicionários de português, mas a maioria dos biólogos de língua portuguesa — com exceção, claro, daqueles muito servis ao americanismo — emprega em seu lugar o mais consentâneo “evolutivo”, como, aliás, empreguei no início deste parágrafo.

in contrast é uma expressão idiomática inglesa que introduz uma oposição entre duas ideias ou a introdução de um novo tópico, diferente do anterior. O equivalente português usado por muitos tradutores de livros de divulgação científica (suponho que em outros gêneros de literatura ocorra o mesmo), “em contraste”, é uma expressão que, a rigor, não existe na língua portuguesa (ou melhor, agora existe, graças ao uso, tão reiterado quanto inadequado, que esses tradutores fazem). A ferramenta gramatical mais fluente que temos em português para indicar uma oposição ou mudança de tópico é o advérbio “já”: “Meu irmão gosta muito de matemática; já eu prefiro história”. (Observe também o uso que fiz de “já” no início deste parágrafo.) Veja agora o emprego de “em contraste” em português: “Meu irmão gosta muito de matemática; em contraste, eu prefiro história”. Perceberam?

E o que dizer de “incluindo” quando se quer destacar elementos de um determinado conjunto? Prestem atenção à seguinte frase: “Muitos escritores românticos, incluindo Shelley e Keats, utilizaram esse recurso estilístico”. O original inglês é: Many romantic writers, including Shelley and Keats, employed this stylistic feature. Não é óbvio que o uso de “dentre os quais” ou “dentre eles” soa muito mais natural em português do que o literal “incluindo”?

Mas a cereja do bolo para mim é o emprego do adjetivo “presente” e do advérbio “presentemente” com o sentido de “atual” e “atualmente”: “As presentes pesquisas na área têm confirmado esse resultado”; “Presentemente, os cientistas estão empenhados numa outra linha de investigação”. Ocorre que em inglês actual não significa “atual” e sim “efetivo”, assim como actually quer dizer “efetivamente”, “na verdade” e não “atualmente”. Para indicar atualidade, o inglês lança mão dos adjetivos present (the present President of the United States, Joe Biden) ou current (the current events compel us to disagree with this hypothesis). Por sinal, já vi traduções do tipo “os correntes eventos nos compelem a discordar dessa hipótese” quando o que diríamos em bom português é “os atuais acontecimentos nos obrigam a discordar dessa hipótese”.

Outra gafe dos tradutores é empregar “evidência” (em inglês, evidence) no sentido de “prova”: “o local foi totalmente isolado para que não se perca nenhuma evidência do crime”.

A lista é longa: “localização” (isto é, location) em lugar de “local”, “manufaturar” (manufacture) em vez de “fabricar”, “acurácia” (accuracy) por “precisão” ou “minúcia”, “mais tarde” (later on) no sentido de “mais adiante (neste livro)”, etc. etc.

Há ainda o problema da inadequação gramatical, especialmente em relação a verbos. Coisas como “os cientistas têm estado estudando a questão” são o transplante para o português de um tempo verbal (o present perfect continuous) que nossa língua não tem (dizemos, em vez disso, “os cientistas têm estudado” ou “vêm estudando”).

Outro erro é manter o gerúndio quando o que cabe é o infinitivo: “Indo a encontros e festas é a melhor maneira de fazer networking”. (Em inglês: Going to meetings and parties is the best way to network.)

Também soa estranha a omissão do artigo definido em casos nos quais o português sempre o usa. Por exemplo, “Mulheres são mais propensas do que homens a esse tipo de acidente”, quando o natural em nosso idioma é “As mulheres são mais propensas do que os homens…”. É que em inglês não se usa artigo quando se fala de determinada coisa ou pessoa em sentido genérico ou coletivo (é o chamado artigo partitivo, que se aplica aos substantivos incontáveis, ou uncountable nouns).

Mas o pior de tudo é quando o tradutor não domina o assunto do livro e traduz quantum physics por “física do quantum” ao invés de “física quântica”, Avestan por “avestano” (o nome correto dessa língua da antiga Pérsia é “avéstico”), e por aí vai.

Um dos maiores erros que já vi nesse sentido foi a tradução de Galileo’s inclined planes (os planos inclinados de Galileu, que todos estudamos nas aulas de física do colégio) por “aviões inclinados de Galileu” (plane em inglês significa tanto “plano” quanto “avião, aeroplano”). Como é possível um tradutor de ciência não saber que no início do século XVII, época em que Galileu viveu, o avião ainda demoraria trezentos anos para ser inventado?

A que conclusão chegamos? Primeiro, certos tradutores que prestam serviços a grandes editoras não dominam tão bem o inglês ou o português quanto deveriam. Segundo, a revisão de texto é bastante falha. Terceiro, essas editoras são pouco exigentes em relação à qualidade do trabalho. O que é de admirar, visto que esse tipo de obra se destina a leitores cultos, muitas vezes com conhecimento técnico na área, e, portanto, com alto grau de exigência.

Eu, por exemplo.

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ALDO BIZZOCCHIAldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.

Acaba de lançar, pela Editora GrupoAlmedina,

“Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”

Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br

e-mail: aldo@aldobizzocchi.com.br

3 thoughts on “O literalismo das traduções de livros no Brasil. Por Aldo Bizzocchi

    1. Caro Carlos, nesse caso a tradução não estaria totalmente errada, pois na Idade Média os médicos eram chamados de físicos em Portugal. Naquela época, a física como ciência ainda não existia.

  1. Obrigada por suas considerações, você lavou minha alma. Sempre foi questão de honra para mim evitar anglicismos e encontrar expressões comuns de nossa língua para tentar aproximar o leitor do significado dos jargões e expressões idiomáticas normalmente usados, seja nos livros de divulgação científica ou em outros textos. Não suporto o uso de palavras como “performar” ou “startar [um projeto]”. Não chego ao ponto de exigir que “feedback” seja traduzido como “retroalimentação”, mas lamento profundamente que se perca o sabor do linguajar característico de nossa cultura.

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