Navegando por entre mísseis e foguetes. Por Aylê-Salassié F. Quintão
Navegando…Pois é, tanto palpitamos que estamos lá, metidos nos conflitos no Golfo de Áden, na entrada do mar Vermelho, no meio daquela barafunda de navios de guerra, comerciais e porta-aviões ingleses e americanos trocando diariamente dezenas de bombas e mísseis com grupos rebeldes houtis…
“Qual cisne branco que em noite de lua, vai deslizando no mar imenso...” A Marinha está com concurso aberto para marinheiro. Mas, esse tempo aí parece ter acabado. O Brasil está se envolvendo vagarosamente nos conflitos do Oriente Médio. Desde o final de janeiro, a Marinha brasileira comanda na região uma força tarefa chamada Combined Task Force (CBF 151), uma organização destinada a proteger a navegação mercante no Mar Vermelho, e que reúne navios de forças navais de 41 países, dividida em cinco grupos de embarcações.
Pois é, tanto palpitamos que estamos lá, metidos nos conflitos no Golfo de Áden, na entrada do mar Vermelho, no meio daquela barafunda de navios de guerra, comerciais e porta-aviões ingleses e americanos trocando diariamente dezenas de bombas e mísseis com grupos rebeldes houtis. A semana passada um graneleiro brasileiro que levava produtos agrícolas para o Irã foi atacado.
Como se sabe, ali, de um lado, é palco de uma guerra dos norteamericanos e ingleses contra grupos milicianos armados houtis – iemenitas da minoria muçulmana xiita; do outro, é o paraíso da pirataria somalí, que invade e sequestra navios mercantes, expropriando as cargas e chantageando países e empresas com pedidos de resgate para a devolução das embarcações ou ainda aplicando tarifas exageradas para a travessia do Golfo. Não se consegue identificar exatamente quem é pirata. O governo faz de conta que não vê, porque as atividades desenvolvidas ocupam muitos desempregados, que ameaçam a estabilidade da Somália, um dos países mais pobres do mundo. Pelo Golfo de Áden passa quase 80 por cento do comércio global.
Os filmes “Capitão Phillips” e os “Piratas da Somália” (Dabka), lançados ambos há uns dez anos, e outros documentários feitos com rebeldes da região, retratam o que acontece. A pirataria é tratada como uma ocupação formal. Mas os somáli justificam essas atividades, que acontecem clandestinamente, alegando que são ações em favor da proteção ambiental do Golfo, usado como lata de lixo para centenas de navios que transitam ou atracam na região por algum motivo.
A proteção desses navios mercantes por forças internacionais tem o propósito de desestimular a pirataria e proteger o tráfego, o que vinha sendo conseguido com relativo sucesso. Os comandantes dos navios convivem com o drama, procurando administrar a relação. Mas, grupos houtis, do Iêmen, introduziram uma nova variável, incorporando-se ativamente à frente rebelde de apoio ao Hamas, em combate contra Israel. Eles ocupam a parte Oeste do território do Iêmen, país incrustrado no Golfo de Áden.
Ao começar a atacar navios na entrada do Golfo, os houtis reacenderam a pirataria marítima naquela região do oceano Índico, acesso obrigatório ao mar Mediterâneo. O trecho corresponde a uma via marítima de quase quatro mil quilômetros extensão, passando pelo mar Vermelho, para atingir o Canal de Suez e, consequentemente, o Mediterrâneo. Do outro lado, aparentemente tudo coordenado pelo Hamas, navios mercantes franceses e espanhóis teriam enfrentado nas últimas semanas problemas de pirataria na entrada do estreito de Gilbratar, já no Mar do Mediterrâneo, e tiveram respostas duras das respectivas forças navais.
A Marinha do Brasil, além de pretender dar sua contribuição para o estabelecimento da paz no Golfo de Áden e o retorno à normalidade do tráfego mercante, foi indicada para liderar um grupo de embarcações de fiscalização e rastreio das ameaças latentes na região, entre as quais estão cargueiros brasileiros que trafegam por ali transportando produtos exportados e importados, inclusive para a China, maior parceiro comercial do Brasil. Os piratas atacam à noite, sorrateiramente e agem com violência. Então, esse romantismo do “cisne branco deslizando no mar imenso em noite de lua” não combina muito com a situação em que a Marinha Brasileira está metida no Oriente Médio.
Esses tipos de enfrentamentos da Armada Brasileira não são novidade. Formada, inicialmente, com navios portugueses, que se posicionaram firmemente contra invasões estrangeiras na Declaração da Independência e na Proclamação da República, a Marinha do Brasil tem um histórico dramático de violência política e contra a própria marinhagem, Revolta da Chibata, reação que consagrou o marinheiro João Cândido como herói nacional.
Reaparelhada pelos norte-americanos na 2ª Grande Guerra, tem participado diretamente de guerras até a perseguição e 66 ataques a submarinos alemães e realizou missões de guarda de comboios para o Norte da África e no mar Mediterrâneo. Entre 1942 e 1945, foram comboiados cerca de 3 164 navios em 575 comboios, sendo 1 577 brasileiros e 1 041 norte-americanos. Ultimamente, comboiou o equivalente a 50 navios mercantes brasileiros.
A Marinha é a mais velha das forças armadas brasileiras. Dispõe de cerca de 100 embarcações, que variam de seis submarinos (um nuclear), um enorme porta helicópteros e vários outros tipos de unidades, até o Parnaíba, com 85 anos de idade, um dos mais velhos do mundo em atividade. Não tem porta-aviões: o Minas Gerais, comprado por JK, foi para o ferro velho; e o São Paulo, com 22 anos, desativado, por causa do amianto no casco, vaga pelos oceanos, vazio, como um navio fantasma.
Não há quem o queira, nem os piratas, os houtis, nem o Hamas.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural, ex-guarda florestal do Parque Nacional de Brasília Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018