Revisita à Lava Jato. Por Aylê-Salassiê Quintão
Lava Jato. Memórias do esquecimento: revisitando crimes confessos contra o Estado
Pela legislação em vigor no Brasil, qualquer cidadão pode chegar a prefeito, deputado, presidente da República ou ministro no Judiciário. Sempre me passou pela cabeça que antes de ocupar um cargo público todo candidato, eleito ou indicado, deveria ser submetido a um exame de sanidade, feito por profissionais habilitados.
Observe-se o que esse ministro Dias Toffoli está fazendo: desqualificando, monocraticamente, os resultados da Operação Lava Jato e suspendendo o ressarcimento ao Tesouro Nacional de prejuízos com operações fraudulentas, confessas pessoalmente por um punhado de empresários e políticos nacionais. Não é pouco dinheiro: próximo de 15 bilhões de reais, cobriria parte do déficit das contas públicas, que o ministro Fazenda, Fernando Haddad, esforça-se para conter.
Nesses dez a quinze anos, tempo de três a quatro mandatos presidenciais, e metade do tempo das aposentadorias no Supremo Tribunal Federal, se somarmos os desvios de recursos públicos da Lava Jato e do Mensalão – este sempre lembrado na discussão das tais emendas parlamentares -, a soma dos dois inquéritos políticos policiais representaria um prejuízo ao Tesouro Nacional superior a 20 bilhões de reais.
Para ficar na Lava Jato. Cinco anos de investigação, 285 condenações, 600 réus e 3.000 anos de penas de prisão. Só no STF foram 300 inquéritos e deflagradas 60 fases desde 2014.
O fato está registrado na História do Brasil, na mente e no coração dos brasileiros como a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro ocorrida no país. A Lava Jato gerou a expedição de 1250 mandados, 140 condenações e detectou logo R$ 800 milhões desviados só dos cofres da Petrobras. O rombo generalizado é muito superior e está tipificado, como crime, na legislação, conforme mostram pesquisas de duas jornalistas ligadas ao campo jurídico, Brenda Lícia e Heloisa Sousa, seguindo o relatório da Lava Jato.
Entre os crimes investigados, e detectados, os maiores destaques estão no pagamento de propinas – paga-se, com vantagens para o contratante, determinados serviços: corrupção ativa e passiva (art. 333 do Código Penal); evasão de divisas – crime financeiro: envia-se dinheiro para outros países sem declarar à Receita (art. 22 da Lei 7492/86); Caixa 2, lugar onde se guardam faturamentos ilegais, provenientes de esquemas de desvio, e que se associam com os crimes de lavagem de dinheiro e sonegação fiscal, paraíso de doleiros e ex-diretores de empresas, políticos e funcionários públicos (Lei 8137/90); Lavagem de dinheiro – ocultamento da origem de bens adquiridos com tráfico de drogas, comércio de armas, compra de joias, obras de arte, corrupção, má gestão pública, caixa 2 para partidos políticos, prostituição: lócus privilegiado das empresas fantasmas (Art. 1º da lei nº 9.613); Organização criminosa – atuação em grupo, de forma organizada, realizando atividades ilícitas para tirar vantagens particulares (art. 2º da lei 12.850/13); Crimes financeiros – lesão ou dolo ao Sistema Financeiro Nacional (Lei 7.492/1986).
A investigação da Lava Jato gerou quase duas mil ações de buscas e apreensões pela Polícia Federal, resultando em 244 ações penais, 349 prisões preventivas e 211 prisões temporárias. Ao todo, foram denunciadas 981 pessoas, entre empresários, líderes políticos, ministros, inclusive dois presidentes da República.
Os tais acordos de leniência (confissões), feitos após relatórios de banco estrangeiros sobre depósitos financeiros de brasileiros no exterior, resultaram, de imediato, na devolução de R$ 4,3 bilhões de dólares. O Ministério Público Federal recuperou R$ 2,1 bilhões em multas. Mas, as estimativas, incluindo as multas compensatórias chegavam a R$ 12,7 bilhões.
São essas coisas que estão sendo desqualificadas, gerando um novo modelo de cidadãos de bem, amparados em um prejuízo ao Tesouro Nacional de valor incalculável. Ao inabilitar a ficha criminal dos condenados na Lava Jato, o ministro pode provocar o surgimento de centenas de ações contra o Estado por crimes de injúria – embora comprovados – e outros supostos prejuízos decorrentes das condenações, agora judicialmente ignoradas.
Os advogados dos 244 punidos pela Lava Jato estão aí para isso. Leo Pinheiro, devendo R$ 45 milhões ao Tesouro, já está pedindo o cancelamento da dívida como o feito para a Odebrecht e a JBF. Os lobistas Augusto Rezende, Lúcio Funaro e o próprio Eduardo Cunha querem a mesma coisa. E com essa decisão, vão-se, pela segunda vez, as projeções de déficit zero do ministro Fernando Haddad: nem em 2024, nem em 2026, ano das eleições.
Estão aí claros os verdadeiros motivos da cassação do parlamentar Deltan Dallagnol, uma das maiores votações do Brasil para a Câmara dos Deputados na última eleição. Ele foi o representante do Ministério Público que, junto com a Polícia Federal, investigou os crimes descobertos pela Lava Jato. Paira no ar, não a justiça, mas a vingança, de ex-condenados pela Lava Jato. Está aí também a perseguição desencadeada pelo atual governo – cujo presidente da República chegou a ser preso pela Lava Jato – ao senador Sérgio Moro, uma das unanimidades nacionais, por ter conduzido, como juiz, a Lava Jato, e assessorado a ministra Rosa Weber na investigação do Mensalão. Sabe tudo. E, assim, vão cassá-lo.
A população, apelidada, nas narrativas odientas, de “direita”, não esqueceu também o relator original da ações da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Teori Zavascki, morto em um acidente de avião mal explicado. Era auxiliado por um juiz instrutor, Márcio Schiefler Fontes, considerado seu “braço direito”, afastado a seguir. Para o lugar de Zavascki foi nomeado o ministro Edson Fachin, que, como advogado, defendera antes causas do partido dos Trabalhadores em Curitiba. Infelizmente, é o que se vê nessa “democracia de compadrio”, que cultiva a vingança pelas mãos amigas, e não a lei.
O desdém pela História, pela Constituição e pelo cidadão excedem a indignidade. Falta pudor. Só pode ser coisa de pessoas com personalidade duvidosa ou doentes mesmo. Para perdoá-las, só Deus, se existir.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural, ex-guarda florestal do Parque Nacional de Brasília Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018