Estenda as mãos aos pingos. Por Antonio Contente
… uma chuva de pingos grossos, generosos, caiu sobre as mãos que estendi ao espaço fora da janela deste tugúrio. Para que o borrifar batido pelos ventos escorresse entre meus dedos, caindo depois não apenas no chão.
A glória dos pássaros é não desistir dos céus, do mesmo jeito que a glória das nuvens não é emitir raios, sim o se desfazer em águas para fecundar a terra. Escrevo com antecedência, não sei como estará o tempo quando esta crônica sair. Porém agora, exatamente agora, abrem-se as comportas do infinito; e uma chuva de pingos grossos, generosos, caiu sobre as mãos que estendi ao espaço fora da janela deste tugúrio. Para que o borrifar batido pelos ventos escorresse entre meus dedos, caindo depois não apenas no chão. Sim, também, sobre as flores sem nome que os ventos plantaram exatamente embaixo do meu peitoril. Ah, como são bonitas as flores plantadas por ninguém. Exatamente aquelas que nascem nos vãos das calçadas ou das paredes antigas, dádiva dos deuses que os homens da Limpeza Pública nunca foram orientados a deixar nas ruas, para o sol e para nossos olhos…
Nem se precisa estar sob ameaça de seca para a gratificante entrega de assistir uma chuvarada cair, alegria pura em qualquer circunstância. Num instante assim você pode ver tudo, bastando que para isso tenha olhos. O estilhaçar dos pingos sobre o chão, o escorrer deles na dimensão das folhas, e até as lentas cascatas que despencam entre nódulos e cascas de troncos mais velhos do que a percepção das eras. Chuvas servem para encher represas ou transbordar rios; todavia, e aí está um dos seus melhores fascínios, também remetem aos caudalosos caminhos das recordações mais bem guardadas. Sem falar da sagrada aureola que concedem aos beirais.
Qualquer tarde dessas, amigo, antes que a seca volte, aproveite o cair de um pampeiro e siga pequeno ritual para dele tirar mais do que apenas a esperança de que água não nos falte nunca. Assim que os pingos começarem a escorrer pelos vidros das janelas, pegue alguma música de que goste (se for qualquer das Sonatas de Mozart, com Glenn Gould ao piano, tanto melhor…) e escute. Quem sabe rebrotarão em sua memória retalhos do longe e há muito tempo. Gritos da meninice peralta, razões da juventude tão fugaz quanto todo o resto ou, até, para melhor compor a oportunidade para o encantamento, olhares travessos que certa menina de tranças sobre você lançou. Se tiver estilhaçado depois seu coração, tanto melhor; pois as dádivas d’amor caem como plumas adiante, no seguir da vida, sobre peitos que sofreram e cicatrizaram.
Se de noitinha as pancadas tiverem amainado, permanecendo o chuvisco que já se chamou garoa, pegue o guarda-chuva e vá andar sobre as primeiras luzes dos postes que se fixaram sobre calçadas. Pise docemente nas luminosidades que o chão oferece a seus pés e, após meia dúzia de passadas, pare e respire. Deixe que o ar úmido da noite penetre em suas entranhas, aspire o aroma das folhas dos jardins das casas ou das sibipirunas das esquinas e, simplesmente, entregue-se à simplicidade de ser feliz.
Retornando à casa, você já sabe que estará envolvido por uma noite lavada. Mesmo que nuvens persistam tapando as estrelas, do alto virá, na brisa limpíssima, a exata noção do significado delas. Por fim, enquanto batuco o fecho da crônica, escuto que o aguaceiro voltou. A esta hora, porém, os passarinhos que passam pelas duas goiabeiras do jardim estão abrigados nos seus ninhos. E os veleiros que singram a Praça dos Pássaros, acima da rua Pedregulho, já passaram da Ilha das Amoreiras, dobraram a Península da Sibipiruna Ressuscitada e talvez, mais tarde, ancorem na breve Enseada do Galo Garnizé que, em tempos muito antigos, derramava cantos que eram escutados até nas saudosas madrugadas de ruas que não existem mais.
Pela manhã, será necessário que eu vá olhar com olhos mais atentos o jardim. Preciso conferir como se firma a quaresmeira recém-plantada na calçada fronteira, e se as maritacas, nesta pós-safra das goiabas, ainda chegam para grasnar à luz do sol que nasce pouco além do Jardim das Paineiras. Manhãs molhadas pelas chuvas da noite acabam por conceder aberturas muito acariciantes ao nosso olhar. Quando este texto sair, já faltará apenas mês e pouco para o Outono. Acho que não existe melhor estação para que, com o vinhozinho da tarde, empreendamos o acariciante caminhar sobre alguns acontecimentos. Mas só aqueles dos quais vale a pena sentir saudades…
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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