livros - amigo de todas as horas

Livros. Por Raquel Naveira

Quero estar em paz, entre meus livros, enquanto me preparo para entrar numa cidade iluminada. Numa biblioteca infinita. Será a glória…

livros - estante

       Minha paixão pelos livros vem da infância. Sempre gostei do objeto livro, mesmo antes de ler ou escrever. Folheava as páginas e intuía que um livro aberto continha vozes e segredos desvendados. Observava as capas, a textura do papel, o cheiro da tinta. À noite, no escuro do quarto, acendia uma vela e passava a chama devagar pelas ilustrações coloridas, imaginando que ficariam animadas.

Na nossa casa, morou conosco durante muito tempo uma governanta e babá chamada Correntina, que viera de Bela Vista, fronteira do Paraguai. Um dia, ao me ver debruçada sobre um livro perguntou:

_ Você já aprendeu a ler?

Respondi, mentindo:

_ Já.

E ela, um pouco irônica:

_ E o que está escrito nesse livro?

_ É a história de um pirata que atravessou o mar para encontrar um tesouro numa ilha cheia de fantasmas. E comecei a inventar uma história. Enorme o prazer de vê-la surpresa, acompanhando cada palavra. A descoberta de um estranho poder.

E assim os livros sempre me acompanharam. Achei especialmente linda a cartilha “Caminho Suave”, aquela estrada entre lírios alaranjados, que levava a menina à Escola, porta da ciência, do conhecimento, da sabedoria. Os contos de fadas de Andersen: lombada cor-de-rosa. A coleção completa de Monteiro Lobato: lombada verde com losangos dourados. As lendas árabes de Malba Tahan: cor-de-vinho, com desenhos de palmeiras brancas. E o Tesouro da Juventude, capa cinza, onde li em voz alta os primeiros versos, os primeiros poemas. A forma e o ritmo, minha expressão de amor.

Logo compreendi que o livro era manifestação de algo mágico, recanto de palavras perdidas. Que as letras se embaralhavam, depois se combinavam infinitamente e revelavam a totalidade de seres, decretos e enigmas.

Um dia, saí andando pelo mundo e pelas cidades, à procura de livros. Dos livros de meus escritores preferidos. Dos meus próprios livros. Saí em busca de mim mesma pelas ruas centrais, pelos labirintos onde há sebos cheios de corujas e gatos ocultos entre as prateleiras.

Adoraria ter escrito como o poeta carioca Antônio Cícero um livro intitulado A Cidade e os Livros. Começá-lo com um poema onde descreveria o centro do Rio, cidade proibida, entrando em becos, travessas, avenidas, galerias, cinemas, livrarias com nomes exóticos como: Leonardo da Vinci, Colombo, Alfândega, São José, Cosmos, Berinjela. Maravilha-se o poeta: “Eu só sentia algo semelhante ao perceber que os livros dos adultos também me interessavam: que em princípio haviam sido escritos para mim os livros todos.”

Em São Paulo, os sebos estão ao redor da praça da Sé. Vou sempre ao Messias, ao José de Alencar, ao Nova Floresta. Esse nome, Nova Floresta, me faz lembrar  livros que caem de árvores, no meio de um bosque coberto de folhas de papel, que o vento leva e farfalha.

Para o argentino Jorge Luis Borges, os poetas, como os cegos, podem ver no escuro. Ele imaginou em seu conto “Biblioteca de Babel”, uma biblioteca universal, com todos os livros do mundo e, em “Livro de Areia”, um livro monstruoso, objeto de pesadelo, que prendia a atenção do leitor para sempre.

E por falar em biblioteca, em templo do saber, veio à minha memória o Real Gabinete Português de Leitura, na rua Luís de Camões, no centro do Rio. Que beleza arquitetônica, que acervo fantástico. Uma instituição que dignifica Portugal no Brasil, desde 1837. Verdadeiro padrão da nacionalidade e da língua portuguesa transformada em arte literária. Na sala de leitura, entre vitrais coloridos representando a náutica dos descobrimentos, vários níveis de estantes repletas de livros. Enquanto observava quase sem fôlego aquele espetáculo, uma mulher ao meu lado persignou-se, fazendo o sinal da cruz. A sensação profunda de pisar um lugar sagrado.

A Bíblia, o grande livro de minha alma poética, menciona várias vezes a expressão “O Livro da Vida”. Paulo disse que as pessoas que cooperam com ele no evangelho tinham seus nomes escritos no Livro da Vida. E Jesus afirmou que os nomes dos vencedores que se mantêm puros não seriam apagados desse livro.

Quero estar em paz, entre meus livros, enquanto me preparo para entrar numa cidade iluminada. Numa biblioteca infinita. Será a glória.

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Raquel Naveira – Raquel Naveira –  Formou-se em Direito e Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e ao PEN Clube do Brasil; diretora cultural da UBE (União Brasileira de Escritores) de São Paulo.

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