domingo- janela

Domingo. Por Antonio Contente

janelas domingoAbro a janela do quarto e, logo cedo, sou tomado pela luz de um belo domingo. Olho para o alto e ali estava: impecável céu azul bordado, aqui e ali, por enormes flocos, que penso em chamar d’algodão, de nuvens alvíssimas. Brancas, mais brancas do que as neves do Kilimanjaro. Horror de quem voa, vistas aqui de baixo são indispensáveis para bordar as noções de distâncias; alados tufos onde descansam anjos e serafins.

Cada domingo tem seu significado, a depender de quem transita no escorrer de suas horas. Domingo pode ser algo fluido, mar, rio no qual você navega com o plácido sentido de ir apenas. Já bater pernas, em certas horas, pode ser exercício de navegar com a colocação de temas ternos em sua cabeça. Temas que, mais do que devolver, ampliam sua percepção; servindo para captar reservas da alma que purificam as pequenas ou grandes (por que não?) coisas que criamos.

Com certeza todas as pessoas têm certos domingos que ficaram guardados. Instantes no quintal de alguma casa, percorrer de estradas que levam às amplitudes, cuidar de jardins cujas pétalas retêm os mínimos cantos das auroras, ou instantes de amor cujos beijos certamente exalaram mais encantos do que se tivessem sido trocados numa segunda-feira.

Domingos guardam a criança que fomos, a mangueira escalada, o passarinho apreciado, o banho em rio tomado, ou o olhar ainda não tão cobiçoso para a primeira menina que cruzou nosso caminho. Nos domingos ficaram gritos de satisfação ou gargalhadas que se espalharam às brisas, gestos que chamaram as perspectivas das alegrias, e suspiros de cansaços que, lá adiante, iriam tornar muito melhores nossos descansos.

Domingos, quase sempre, começam a ser esculpidos por claridades que iluminam cantigas. É a partir delas que os caminhos se abrem para que os passos conduzam às montanhas mágicas que diferenciam as nossas planícies. Para mim, muito particularmente, domingos trazem aromas de quintais. Como aquele que eu tive, ampla nesga de terra que conseguia abrigar dezenas de árvores, jardim, galinheiro e até coradouros onde os lençóis brancos, neles estendidos, faziam doer os olhos sob o sol do meio-dia.

Domingos, por todos os modos, são recortes de retalhos. Lá ia, envolvida por ele, a menina de blusa branca que buscava a missa do instante santificado. Isso enquanto em outro momento apenas ficava na janela aquela outra, de cabelos longos que quase se derramavam sobre o peitoril. Em ambos os instantes, cheiro de incenso. Vindo da fumaça de um turíbulo balançado sob o céu, sem assustar aves, mesmo a bater nos galhos; a abençoar, sempre, o sazonar dos frutos, a intimidade dos ninhos de todos os passarinhos e os maravilhosos e abençoados pecados absolutamente veniais de todos os amantes.

Domingos, mesmo nos lugares onde isso não é possível, têm, em seu alongar das primeiras horas, velas ao vento. Que lindos eram aqueles triângulos, verdes uns, beges outros, azuis terceiros, necessitados da orientação das bujarronas que continham a precisão dos sopros. Horizontes, aquáticos ou não, mas horizontes. É neles que os domingos se desdobram na precisão das ofertas. É neles que estão os recados dos caminhos, as necessidades do apenas percorrer, ou as explicações das luzes e sombras dos destinos. É neles que os céus se formulam para que deles sejam soltas as rosas que vão maravilhar recantos férteis, a alimentar olhos sedentes de belezas. É neles que, paradoxalmente, a percepção do perto se abriga para que melhor se veja o escorrer das cores ao longe, o esculpir das matérias e a sabedoria das necessidades do espírito.

Domingos, isso também não se pode esquecer, encapsulam os resguardados envolvimentos do silêncio. Tão importante para que seja não quebrado, sim acariciado por um piano; cujo som até pode vir de muito longe, desde que traga, na razão do seu percorrer, alguma das Sonatas de Mozart. Só nos domingos, amigos, estas notas musicais escorrem pelos telhados, de preferência os benzidos por musgos; como se fossem suspiros de espiritualizada chuva a descer lentamente pelos beirais.

Sim, sim, eu dizia, no princípio deste texto, que abri a janela do quarto e por ela entrou este total e indesmentível domingo. Dadas as circunstâncias da vida a que somos obrigados a nos conformar nestes tristes tempos, me entrego então às pequenas reflexões do que ainda consigo escrever. Fecho os olhos ao instante para que possa abri-lo, em outros. E, neles, poder navegar por tudo que me consola. Inclusive por saudades vividas e por uma outra, muito grande, que não posso revelar. Mas, como se tratava de um domingo, nossas mãos se encontraram e nossas vozes se uniram. A imaginação é o conforto para aquilo que os céus muitas vezes nos dão; tirando depois…

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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