Pra quem é, tá de bom tamanho

Pra quem é, tá de bom tamanho. Por Myrthes Suplicy Vieira

… Quando eu choramingava, exausta por não estar conseguindo alcançar o padrão desejado, ela piscava para mim e acrescentava com uma risada: “Não se preocupe, pra quem é, tá de bom tamanho”…

Pra quem é, tá de bom tamanho

Quando eu era criança e havia alguma festinha de aniversário em casa, minha mãe se encarregava de preparar todos os salgadinhos e doces – isso para uma concentração de, pelo menos, 50 convivas. Para agilizar a execução de uma tarefa tão gigantesca quanto essa, ela colocava todas as filhas a postos para ajudar na preparação e fritura/assamento das massas, elaboração dos enfeites, arrumação da mesa e decoração da casa.

A mim era destinada quase sempre a enfadonha e repetitiva tarefa de esticar a massa das empadinhas dentro das fôrmas, talvez por não envolver o uso do fogo ou por permitir supervisão constante. Canhota e desajeitada por natureza, eu tentava de todas as maneiras corresponder às expectativas de confecção de uma camada fina de massa tanto na base quanto nas paredes laterais de modo a não comprometer a degustação do recheio.

A atenção aos detalhes sempre teve importância muito maior para mim do que a rapidez na execução de qualquer tarefa. Minha mãe dizia que eu “bordava” qualquer trabalho que me fosse solicitado. Para garantir um resultado satisfatório com a mão “errada”, eu, de fato, demorava uma eternidade: ia e voltava infinitas vezes pressionando a massa contra o fundo das forminhas até que ela se tornasse transparente, só para constatar mais tarde que ela havia rasgado na base ou que as paredes haviam ficado grossas demais. Daí era engolir em seco e recomeçar do zero. Ansiosa para se dedicar ao preparo dos demais quitutes, minha mãe tentava me apressar, relevando algumas pequenas imperfeições. Quando eu choramingava, exausta por não estar conseguindo alcançar o padrão desejado, ela piscava para mim e acrescentava com uma risada: “Não se preocupe, pra quem é, tá de bom tamanho”.

Essa frase me aturdiu desde a primeira vez que a escutei e a incompreensão pelo tom zombeteiro me assombra até os dias de hoje. Não entendia como minha mãe podia me aconselhar a usar de dois pesos e duas medidas na entrega de um trabalho, conforme o perfil de seu destinatário final. Quer dizer, então, que havia pessoas com paladar requintado o suficiente para perceber que o produto tinha um acabamento gourmet e outras que engoliam despreocupadamente qualquer coisa que lhes fosse oferecida desde que satisfizesse seu apetite? Para mim, essa categorização era inaceitável: significava (e ainda significa) que o capricho na execução da tarefa não é um valor intrínseco ao caráter do executor, mas simples conveniência social.

… Graças ao período recente em que fui forçada a ficar de molho por causa de uma queda, pude compreender, como nunca antes, as consequências desastrosas que a adoção de um padrão imaginário de perfeição, inatingível para o comum dos mortais…

Cresci tentando exorcizar o caráter antiético dessa ideia, mas não teve jeito: ela nunca me abandonou e acabou sendo incorporada ao meu código pessoal de princípios morais reversos – isto é, das coisas que eu nunca deveria conscientemente tentar fazer. A opinião do usuário final sobre a excelência ou insuficiência técnica do meu trabalho também jamais foi capaz de superar minha ácida crítica interna. Se não estou satisfeita com a qualidade do que me propus a fazer, nenhum elogio tem o poder de compensar a frustração e a sensação de impotência, enquanto as críticas negativas são catalogadas apenas como mais/menos cruéis do que a minha própria.

Graças ao período recente em que fui forçada a ficar de molho por causa de uma queda, pude compreender, como nunca antes, as consequências desastrosas que a adoção de um padrão imaginário de perfeição, inatingível para o comum dos mortais, havia provocado em mim. Entendi que jamais ousei me profissionalizar de fato. Preferi sempre me apresentar como uma amadora de boa vontade, curiosa e disposta a aprender com seus erros. Todos os trabalhos que apresentei eram entregues já com as devidas ressalvas: ‘Olha, esse foi o melhor que pude fazer, mas não creio que tenha encontrado todas as respostas que você buscava’; ‘Como foi a primeira vez que lidei com isso, devo ter deixado escapar algum fator relevante’; ‘Se você me der mais tempo, posso revisar toda a análise, sem custo, e corrigir eventuais distorções’.

Claro que essa pretensa “humildade” estava a serviço de minimizar minha sensação de culpa, desviar a atenção da minha real incompetência e compensar a dor da minha ferida narcísica. Obviamente, a síndrome da impostora que me afligia acabou tendo também um enorme impacto financeiro negativo sobre meus proventos profissionais. Hoje, revendo os acordos orçamentários que me dispus a fazer ao longo da vida, penso nas infinitas oportunidades que perdi de bancar cursos de pós-graduação ou extensão universitária, viagens, ou me dedicar a outras áreas de interesse, especialmente as que não envolvessem apenas o uso do cérebro.

… Nascida e criada em solo brasileiro, no entanto, me é inescapável admitir que acreditar que “pra quem é, tá de bom tamanho” sempre foi um lema consagrado pelos integrantes dos três poderes de nossa combalida República ao elaborar projetos de combate às nossas maiores mazelas…

Por outro lado, a disponibilidade para me envolver com tarefas que eu desconhecia ou pouco exploradas no mercado acabou agregando um inesperado traço experimentalista à minha imagem profissional. Vários clientes desejosos de conhecer melhor os limites de divulgação de seu produto/marca me abriram as portas para a introdução de novas técnicas projetivas de pesquisa e novos arranjos para o público-alvo. Hoje, olhando para trás, até eu me surpreendo com tantas e tão diversificadas experiências que acumulei – desde atuar como consultora de um centro espírita para descobrir as causas das brigas entre seus médiuns até trabalhar ao lado de redatores publicitários e criativos na identificação de novos apelos mercadológicos.

Nascida e criada em solo brasileiro, no entanto, me é inescapável admitir que acreditar que “pra quem é, tá de bom tamanho” sempre foi um lema consagrado pelos integrantes dos três poderes de nossa combalida República ao elaborar projetos de combate às nossas maiores mazelas. Valores pífios para o aumento do salário mínimo, não-correção da tabela do imposto de renda, fila quilométrica para acesso aos parcos benefícios da Previdência, limitação de recursos para o SUS e para pesquisas nas áreas de educação e saúde, justiça enviesada a favor dos poderosos de plantão e empedernida para lidar com as transgressões de ‘pés de chinelo’ convivem placidamente com um fundo eleitoral de 5 bilhões, fundo partidário igualmente bilionário, desrespeito às cotas para mulheres e negros na composição das chapas… a lista é interminável.

Assim, me ocorre deixar um lembrete final para quem pretende votar nas próximas eleições (municipais, estaduais e, principalmente, na presidencial):

“Nada é suficiente para quem considera pouco o suficiente.”
Epicuro

______________________

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

2 thoughts on “Pra quem é, tá de bom tamanho. Por Myrthes Suplicy Vieira

  1. Até por não ter frequentado as (belicosas ?) séances dos espíritas, não me sinto em condições de psicografar e compreender plenamente Epicuro. Por isso mesmo, e apesar da enigmática obviedade de seu famoso aforismo, a pergunta que sempre habitou minha imaginação foi a reversa : e quando o suficiente já basta, ao menos por ora? Deve-se ou não ir além? A pergunta, apesar de tudo, não é idiota. O desejo irrefletido de tudo superar o tempo todo, de nunca se contentar com o que não seja perfeito, de – enfim – vivenciar a divindade ou se pôr em vestes de Sujeito Transcendental (desejo do kantiano avant la lettre ?), não é em nada irrelevante, seja para a psicanalista atenta aos delírios narcísicos alheios, seja ao cientista social que lida com a desejada – e por vezes impossível – convivência pública saudável. Quem é, como eu, profissionalmente exigido para responder ao Poder sobre até onde deve a política pública chegar, sobre se deve propor soluções apenas suficientes para a momentânea eliminação de contendas de grupos sociais/culturais distintos danosas à convivialidade em espaços comuns, ou se, por outro lado, deve trabalhar para a permanente eliminação das causas (políticas, costumeiras, históricas) do conflito que se apresenta publicamente, ameaçando a sensação de bem-estar social, sabe que a escassez dos recursos públicos costuma trabalhar em favor de soluções medianas que, no entanto, deveriam resolver, e não apenas maquiar, problemas muito mais longevos e resistentes que os governos que vão se perdendo no tempo. Nunca consegui uma boa resposta ao problema que essa situação apresenta. Tanto quanto posso, e meus limitados conhecimentos profissionais me permitem, tento aconselhar decisores públicos (atualmente enlouquecidos com as repercussões locais de temas hoje mundialmente explosivos, literalmente) a porem em prática políticas públicas de alcance mais ou menos longínquo (portanto, imediatamente apenas parcialmente eficientes), mesmo sabendo que o expert advice do cara pago para aconselhar raramente será levado integralmente a sério. Como até hoje sempre fui pago no dia certo, faço o que posso. Trabalho e apresento o que devo apresentar. Se me perguntassem se entrego a meu contratante apenas o que ele – digamos – merece, eu diria que não : ofereço o que posso e minhas forças me permitem. É meu dever. Está no contrato. É o suficiente para que eu durma em paz comigo mesmo, mas sei que, se governos costumassem levar Epicuro a sério, teriam permanentemente sono bem pior que o meu. Enfim, o Paraíso não existe mais. Deus, em sua infinita bondade, dele expulsou Adão e Eva, e todos nós fomos junto para o buraco das imperfeições suficientes.

    1. Interessantes suas reflexões. Também não sei a resposta, mas sempre voltam à minha mente duas referências e visões de mundo diferentes: a primeira, de Fernando Henrique Cardoso, que dizia que a missão do governo era implementar a solução “possível” (o que me incomodava profundamente, embora considerasse o raciocínio correto, já que pé no chão), e a segunda, da teoria japonesa da Qualidade Total, que definia que a qualidade (ou suficiência, no caso) é definida pela satisfação plena do usuário – mas lembrando que essa é uma medida pobre, considerando que o consumidor é um alvo móvel (o que é suficiente/satisfatório hoje não o será amanhã) e a concorrência nunca está morta, sempre à procura de estabelecer novos paradigmas. Talvez a busca de soluções imperfeitas suficientes, como você sugere seja, afinal, a resposta mais sábia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assine a nossa newsletter