O lado fantasma de Maceió. Por Fernando Gabeira
By Chumbo Gordo 1 ano agoMaceió é hoje uma cidade singular. Na praia, onde andam os turistas, há uma feérica decoração de Natal: árvores cobertas de neve, renas, Papais Noéis de diferentes tamanhos. Do outro lado da cidade, estão os bairros fantasmas que percorri durante alguns dias. Meu projeto de reportagem foi inspirado num romance russo, em que aventureiros visitavam bairros abandonados depois de uma invasão alienígena.
Quais eram os vestígios, os sinais das 60 mil pessoas que abandonaram suas 14 mil casas porque o solo ameaça abrir, engolindo todos?
Entre as inúmeras inscrições que colhi nos muros, algumas poéticas, outras indignadas, esta parece sintetizar a história: “Não era para ser assim”.
Desde quando começaram a produzir cloro e soda cáustica, houve 23 desastres. Um deles intoxicou 152 pessoas; outro acabou contaminando o lençol freático de Marechal Deodoro, pequena cidade onde nasceu o homem que proclamou a República.
…A história do desastre tem origem na década de 1970 e envolve personagens conhecidos do Brasil moderno, como a ditadura militar e a Odebrecht. Os militares decidiram abrir a região de Maceió para a prospecção de petróleo…
Quem resistiria aos militares? O governo estadual tinha uma intuição do perigo, tanto que produziu um histórico documento de segurança. Histórico porque até hoje é estudado nas escolas. O texto previa que, em caso de deslocamento de uma nuvem de cloro para o estádio de futebol Rei Pelé, o locutor assumiria o microfone e diria para que todos usassem o seu lenço e o molhassem para evitar os efeitos venenosos do cloro. Como se a multidão levasse lenço aos estádios e houvesse água para todos num mesmo momento.
Na década de 1980, houve o desastre de Bhopal na Índia: 15 mil mortos, 300 mil intoxicados. Ainda assim, decidiram duplicar a fábrica no Pontal da Barra. Chegaram a publicar um anúncio intitulado “Razão e ignorância”, no antigo Jornal do Brasil, criticando o Partido Verde alemão por exagerar o perigo da indústria química — que, por sinal, nasceu na Alemanha hitlerista. Com a duplicação, cerca de 400 caminhões de salmoura circulavam pela área urbana. A imensa exploração foi formando cavernas, houve tremores, as casas racharam, e as pessoas foram progressivamente retiradas de suas casas.
Ficaram alguns animais, alguma roupa antiga, mensagens afirmando que o sal das lágrimas valia mais que o sal-gema. As casas passaram a ser da Braskem, que escreve um número em vermelho na fachada. O número da besta, me disse o pastor Wellington Santos, cuja igreja batista também foi interditada pela Defesa Civil.
A vegetação cresceu, as flores caíram nas ruas, algumas paredes estão semidestruídas. Para demonstrar que estava noutro planeta, consegui uma imagem que lembra isso: um reboco cinza na parede como se fosse uma cabeça humana, com dois orifícios no lugar os olhos. Foi o primeiro habitante desse novo planeta Braskem que documentei. Mas é um pouco também um produto do Brasil.
Houve uma intensa luta ecológica por aqui, a partir do Sindicato dos Jornalistas, que criou o Movimento pela Vida. Houve batalhas parlamentares, uma CPI que a Odebrecht classificou como fruto do exagero da imprensa.
No governo Collor, a área do Pontal da Barra foi tombada. Mas as instalações seguem firmes por lá. O Brasil conviveu com isso, com o argumento de que a indústria química salvaria Alagoas. Hoje, ela é o grande obstáculo, projetando o grande desastre, para o próprio turismo e para a pesca nas lagoas, que ocupam 45 mil pessoas.
Só usando o lenço. Não para neutralizar o cloro, mas para enxugar nossas lágrimas.
Ainda bem que os moradores da Gruta do Padre, olhando mais longe, processam a Braskem na Holanda, onde ela tem empresas. A Justiça de lá aceitou a causa. Pelo menos, pode-se dizer, nesse caso, que o buraco ainda é mais embaixo.