Menino Jesus

Apenas um menino. Por Laurete Godoy

…Talvez Cacá tenha também chorado algumas vezes e nem tenha se lembrado de pedir ajuda ao “Menino”, nos momentos de aflição.

Menino Jesus

Completara treze anos e seus olhos continuavam indefiníveis. Ora castanhos, ora esverdeados. Às vezes cor de topázio. Mas, naquele sábado, garanto que estavam verdes. Da mesma cor que a camiseta do Palmeiras. Cacá sempre a vestia, quando ia assistir ao jogo do seu time predileto. A camiseta e debaixo do braço, a bandeira verde e branco, bem grandona, que ele mesmo confeccionara.

A família, esperando para a formatura, estava apreensiva com a demora. Finalmente, ele chegou com ar preocupado. Cadê a alegria e a bandeira desfraldada? Afinal, o Palmeiras vencera. O que tornara os olhos do Cacá tão escuros e tristes?Palmeiras Resultados, vídeos e estatísticas - ESPN (BR)

Fora ao jogo sozinho e, tranquilo, retornava para casa. À sua frente, um bando de torcedores parados, rindo, zombando. Ele também parou e viu. Um senhor bem arrumado, cabelos grisalhos, tentava equilibrar-se. Deu dois ou três passos e caiu em cima do canteiro. Canteiro repleto de “Coroas de Cristo”. Sangue nos braços, mão incerta procurando arrancar os espinhos que ficaram cravados. Os torcedores parados, rindo. O homem tentava conter as lágrimas que estavam debruçadas, prontas para despencar. A cena repetiu-se por duas vezes. O levantar difícil, o cair fácil, os espinhos, a dor. A mesma zombaria, o mesmo entusiasmo.

Cacá enrolou a bandeira e caminhou em direção ao canteiro. Com a fragilidade dos seus treze anos tentou levantar o bêbado forte, de sessenta. Como a bandeira limitava a ação, jogou-a fora porque precisava dos dois braços. Primeiro retirou os espinhos, depois amparou e, a seguir, perguntou. Vieram as respostas.

Luigi fora ao campo com três amigos. Decidiu comemorar a vitória no bar, bebeu mais do que devia e perdeu-se dos companheiros. Morava na Penha, no outro lado da cidade. Disse o nome da rua e o número da casa. Os torcedores foram, aos poucos, desmanchando o grupo.

Cacá andou duas longas quadras até chegar ao ponto de parada do antigo e tradicional Penha-Lapa. Esperou passar o maior movimento. Parou um ônibus, conversou com o motorista e pediu para descer o passageiro próximo da rua onde ele morava. Promessa feita, continuou o trabalho solidário. Com cuidado acomodou seu amigo. Foi só aí, então, que Luigi perguntou:

       – “Você quem é?”

       – “Não sou ninguém. Apenas um menino.”

       As lágrimas finalmente despencaram. Luigi beijou Cacá e disse:

       – “Que Deus abençoe você. O ‘MENINO’ nunca deixará você chorar.”

Que menino era esse? Cacá não sabia e a mãe explicou que era o Menino Jesus. Mas ele continuava cismado. Por que os risos e a zombaria com aquela cena triste?

Hoje Cacá é um homem. Cinco décadas passaram e é provável que ele nem se lembre mais desse fato. Mas tenho certeza de que, durante a caminhada, se tivesse olhado à sua volta com atenção, veria sempre alguém andando com passos incertos e difíceis. Caindo, tentando levantar, espinhos cravados na alma, dor e desespero. E haveria sempre algumas pessoas assistindo à cena. Rindo.

Talvez Cacá tenha também chorado algumas vezes e nem tenha se lembrado de pedir ajuda ao “Menino”, nos momentos de aflição.

Estamos atravessando o mês em que se comemora o nascimento daquele Menino que cresceu, tornou-se homem, fez pregações e virou Mestre. Imortal! Transmitiu as mais sábias lições de amor, fraternidade, solidariedade e humildade. Era exemplo vivo do amor que pregava. Viveu pela cruz e conduziu-a na derradeira caminhada. O madeiro no ombro, os espinhos na fronte, as quedas, a dor. Os risos, a zombaria.

E neste dezembro, em que as esperanças se renovam, tenho certeza de que, se Luigi ainda estiver por este Plano, como eu, pedirá ao “Menino” que ajude as pessoas a trocarem de posição e tornem-se fraternas e solidárias. Deixem de integrar o bando de insensíveis torcedores e se transformem em Cacá.

Um menino de apenas treze anos. Que possuía olhos indefiníveis, ora castanhos, ora esverdeados.

Mas que, de repente, ficaram azuis e brilhantes. Iguais aos olhos amorosos do “Menino” de Luigi.

_________________________

Laurete Godoy

Laurete Godoy  Escritora e pesquisadora. Autora de Brasileiros voadores – 300 anos pelos céus do mundo. 

 

 

7 thoughts on “Apenas um menino. Por Laurete Godoy

  1. Caríssima amiga Laurete, um farolete que nos seus textos formidáveis indica o nosso caminho a percorrer de coração aberto e brilhante.

  2. Laurete, as lágrimas brotaram nos olhos durante a leitura, sem perceber continuei lendo e sem conseguir contê-las , simplesmente lindo.

  3. Querida Laurete, as lágrimas brotaram nos olhos durante a leitura, sem perceber continuei lendo e sem conseguir contê-las , simplesmente lindo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assine a nossa newsletter