Argentina e o jogo do bicho. Por José Horta Manzano
Quanto ao Mercosul, ao eleitor, pouco se lhe dá que a Argentina continue ou não no grupo. Na verdade, o que importa a nosso eleitor cansado é que a curva da decadência argentina se inverta e que o futuro venha realmente mais risonho…
Por motivo de defasagem de fuso horário, não pude esperar acordado até o fim da apuração na Argentina. Logo de manhã, ligo o rádio e fico sabendo que Milei venceu. “Que horror!”, foi minha reação. “Eu é que não teria votado nesse sujeito!”
Terminado o café com pão (sem leite condensado), veio o tempo da reflexão. Os 56% de votos que o homem recebeu – já roçando os 60%! – significam que praticamente 3 em cada 5 eleitores cravaram o nome dele na cédula. Será que 60% dos hermanos são destrambelhados? Será que já se pode antever, qualquer dia desses, a invasão dos palácios governamentais da bela Buenos Aires, por uma turba ensandecida que entra e quebra exigindo golpe militar?
Minha bola de cristal foi pro conserto e me deixou sem meios de adivinhar. Assim mesmo, eu diria que não, que os mileiístas (com o perdão do neologismo) não invadirão palácio nenhum. Se por acaso invadirem, não será pra pedir golpe, mas pra pedir comida. E isso só acontecerá se a situação do país se agravar a ponto de criar legiões de esfomeados. (O que não é impossível.)
Eu falava do destrambelho dos hermanos. Não, certamente uma eventual inconsistência cognitiva não afeta um contingente tão enorme no país vizinho. Em outras palavras: não endoidaram de vez.
Antes de julgar, tente se enfiar na pele de um cidadão que vê seu país desmanchando. Com 100% de inflação anual, os preços aumentam todos os dias, ninguém sabe quanto vai receber de salário no fim do mês, compras mais importantes ficam imparceláveis visto que a inflação futura é um jogo de azar e ninguém quer arriscar. Produtos comuns rareiam, falta isto, falta aquilo.
Os que podem, dão adeus definitivo ao país e se mandam para Miami (os mais abastados), ou para a Espanha ou Itália (os demais). Na verdade, grande parte da população da Argentina descende de imigrantes espanhóis e italianos. Pululam empresas especializadas em facilitar busca genealógica e recuperação da nacionalidade dos ancestrais. Quem pode, se inscreve. No país, a coisa está feia e os prognósticos são pessimistas.
De repente, aparece um candidato à presidência, saído do nada, um sujeito de quem pouca gente tinha ouvido falar. Lá vem ele, teatral, agressivo, cheio de energia, com pose de salvador da pátria. Garante que vai demolir e arrasar ‘tudo o que está aí’ pra construir tudo novo. Afirma que vai atrelar a economia do país ao dólar (na Argentina, o doce som da palavra ‘dólar’ cai como carícia aos ouvidos). Assevera, ainda, que o futuro será risonho para todos.
O eleitor argentino, cansado de ver o país governado por corruptos e ladrões incapazes, dificilmente consegue escapar ao canto de sereia entoado por Milei. Ao povo, pouco se lhe dá que as Malvinas (Falkland) sejam ou não argentinas, que isso é coisa do passado. Pouco importa também o fato de Milei “explodir” ou deixar de explodir o Banco Central. Quanto ao Mercosul, ao eleitor, pouco se lhe dá que a Argentina continue ou não no grupo. Na verdade, o que importa a nosso eleitor cansado é que a curva da decadência argentina se inverta e que o futuro venha realmente mais risonho.
Javier Milei promete que assim será. Os demais candidatos não têm alternativa melhor a oferecer se não a continuidade ‘do que aí está’. Os eleitores seguiram a receita ‘Tiririca’: pior que está não fica. Seis em cada dez resolveram tentar. Na minha opinião, não são “mileiístas” de carteirinha. Só jogaram no 14 porque gostam de gato. (E 14 é o grupo do gato.)
Torço para que seja verdadeira a promessa, feita por Milei no discurso de vitória, que a Argentina vai recuperar o brilho, a força, a grandeza e a riqueza de décadas passadas. Será um problema a menos para o Brasil. Nada como ter vizinhos ricos. Dado que dinheiro não compra belas praias ensolaradas de areia fina, os argentinos continuarão sem elas. Isso nos garante a vinda de multidões de turistas (abonados) no verão. Para nossa economia, é melhor que ganhar no jogo do bicho.
O brasileiro não pode atirar a primeira pedra, visto já ter passado recentemente por essa estrada. Aqui vão nossos votos sinceros de que a aventura deles não termine em desastre como aconteceu com a nossa.
Desejamos felicidades a nuestros hermanos!
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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