Consciência do mundo num hospital em Gaza. Por Fernando Gabeira
Al-Shifa está cheio de feridos de guerra e doentes. Sem remédios ou eletricidade. Os recém-nascidos estavam do lado de fora…
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO E NO SITE DO AUTOR, www.gabeira.com.br EDIÇÃO DE 20 DE NOVEMBRO DE 2023
Numa segunda-feira, falar de temas tão distantes como um hospital em Gaza, levantar questões como uma ainda inexistente ordem mundial, talvez não seja o melhor caminho.
“Alguma coisa está fora da nova ordem mundial” — diz a canção. Mas Henry Kissinger, em seu livro sobre o tema, diz que nunca houve uma verdadeira ordem mundial. A Paz de Vestfália no fim da Guerra dos 30 Anos (1618-1648) foi um evento europeu.
No momento em que as tropas de Israel entraram no Hospital Al-Shifa, em Gaza, nada pude fazer, exceto me informar. Mas a ONU também nada pode fazer, exceto dizer que hospitais não são campos de batalha. Estamos, portanto, no mesmo barco, eu a ONU.
As imagens do dia anterior foram terríveis. Bebês recém-nascidos fora das incubadoras, por falta de energia. Israel afirma que, com dados da Inteligência, sabe que o Hamas usa o hospital como base. O Hamas nega. Um palestino entrevistado pela Al Jazeera parece confirmar a tese de Israel: o Hamas deveria sair daqui e ir para o inferno. O Hamas usa as pessoas como escudo humano. Sua tese, pós-atentado, é que trouxe Israel para a guerra, e era isso que pretendia para manter acesa a causa palestina.
Não é possível concordar com quem usa mulheres e crianças como escudo humano. Mas também não é possível concordar com quem mata escudos humanos, numa tentativa de alcançar o Hamas.
O hospital está cheio de feridos de guerra e doentes. Sem remédios ou eletricidade. Os recém-nascidos estavam do lado de fora por causa disso. Uma fila de corpos enrolados em lençóis brancos à espera de uma cova comum nos fundos do hospital. As cirurgias eram feitas sem anestesia ou, nos casos mais graves, com meia dose. Médicos e enfermeiros dormem apenas duas horas por noite. E há ainda centenas de refugiados nos corredores do hospital.
As bombas caíram perto. Soldados de Israel invadem o hospital, visitam quarto por quarto. Homens são chamados para uma revista no pátio. Imagino tudo isso sendo visto pelos olhos de doentes e feridos. Vulneráveis e estupefatos, os pacientes do Al-Shifa foram internados no inferno.
Quando a OMS perdeu contato com os médicos e enfermeiros do hospital, percebi uma nova dimensão da tragédia: estavam isolados no centro de Gaza, sem contato com o mundo exterior. Israel permitiu uma visita controlada da imprensa, achou alguns fuzis, mas ainda procurava os túneis.
Minha vontade foi me sentar na calçada com a ONU e chorar a impossibilidade de fazer algo. No entanto o que sempre sonhei ser possível no Conselho de Segurança acabou se consumando: uma declaração enfatizando o direito das crianças e clamando por pausas humanitárias, inclusive a devolução daquelas que foram sequestradas pelo Hamas. Inicialmente, Israel resistirá.
Será que essa pequena dose de influência da comunidade internacional será cumprida? Será que é possível realmente sonhar com uma ordem mundial com tantos conflitos violentos, tanto extremismo religioso?
Algumas tentativas fracassaram ao longo da História. Mas, num momento como este em que nos sentimos tão frágeis, assim como a própria ONU criada para abrigar todos os países, é exatamente quando precisamos renovar a esperança. O que fizemos com a natureza ameaça nossa existência, só falta nos destruirmos antes de sermos expulsos pelo próprio planeta.
Não importa o resultado desta guerra no Oriente Médio. Ela já nos mostrou como são inadequados os instrumentos que temos, inclusive o próprio Conselho de Segurança, que, na verdade, sempre nos assegura que nada ou muito pouco será feito. Suas regras são feitas para que a rivalidade das potências leve à paralisia. Pelo menos as crianças conseguiram sensibilizar um organismo tão ineficaz. São as grandes vítimas e podem ser uma inspiração para a mudança.